Estamos [quase] a dar por terminada a publicação dos textos do grupo FERNANDO PESSOA E EU - OUTRORA AGORA|12ºB, que começou como se vê acima. Agora, pensemos nisto:
Percebamos como Fernando Pessoa nos faz pensar que estas crianças de que falámos aqui não são, obviamente, as crianças que fomos, mas o que hoje lembramos e recriamos e reinventamos sobre o tempo da infância ...
«A
arte consiste em fazer os outros sentir o que nós sentimos, em os libertar
deles mesmos, propondo-lhes a nossa personalidade para especial libertação. O que
sinto, na verdadeira substância com que o sinto, é absolutamente incomunicável;
e quanto mais profundamente o sinto, tanto mais incomunicável é. Para que eu,
pois, possa transmitir a outrem o que sinto, tenho que traduzir os meus
sentimentos na linguagem dele [...]. E como este
outrem é [...] aquela pessoa que é comum a todas as pessoas, o que, afinal, tenho que
fazer é converter os meus sentimentos num sentimento humano típico, ainda que
pervertendo a verdadeira natureza daquilo que senti. [...]
Suponha-se que, por um motivo qualquer,
que pode ser o cansaço de fazer contas ou o tédio de não ter que fazer, cai
sobre mim uma tristeza vaga da vida, uma angústia de mim que me perturba e
inquieta. Se vou traduzir esta emoção por frases que de perto a cinjam, quanto
mais de perto a cinjo, mais a dou como propriamente minha, menos, portanto, a
comunico a outros.[...]
Suponha-se,
porém, que desejo comunicá-la a outros, isto é, fazer dela arte, pois a arte é
a comunicação aos outros da nossa identidade íntima com eles [...] Procuro qual será a emoção humana
vulgar que tenha o tom, o tipo, a forma desta emoção em que estou agora, pelas
razões inumanas e particulares de ser um guarda-livros cansado ou um lisboeta
aborrecido. E verifico que o tipo de emoção vulgar que produz, na alma vulgar,
esta mesma emoção é a saudade da infância perdida.
Tenho
a chave para a porta do meu tema. Escrevo e choro a minha infância perdida;
demoro-me comovidamente sobre os pormenores de pessoas e mobília da velha casa
na província; evoco a felicidade de não ter direitos nem deveres, de ser livre
por não saber pensar nem sentir – e esta evocação, se for bem feita [..., vai despertar no meu leitor exatamente a emoção que eu senti, e que
nada tinha com infância.
Menti?
Não, compreendi [...] assim como nos servimos de palavras [...] para traduzir os mais íntimos e subtis movimentos da
emoção e do pensamento, que as palavras forçosamente não poderão nunca
traduzir, assim nos servimos da mentira e da ficção para nos entendermos uns
aos outros, o que, com a verdade, própria e intransmissível, se nunca poderia
fazer»
In Livro do Desassossego, de
Bernardo Soares/FernandoPessoa
Toda esta reflexão elaborada sobre a natureza da transfiguração do real em arte, do «fingimento poético» está já longe das quadras que Fernando Pessoa escreveu na infância, em 1895, ou mais tarde, sobre o tempo da infância:
Eis-me aqui em Portugal
Nas terras onde eu nasci
Por muito que goste delas
Ainda gosto mais de ti.
***
Ai, quem me dera no tempo
Em que o amar era um bem!
Ai, o amor do meu pai,
Os beijos da minha mãe!
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