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03 novembro 2017

Fernando Pessoa, «Viver é ser outro»

Estamos [quase] a dar por terminada a publicação dos textos do grupo FERNANDO PESSOA E EU - OUTRORA AGORA|12ºB, que começou como se vê acima. Agora, pensemos nisto:
Percebamos como Fernando Pessoa nos faz pensar que estas crianças de que falámos aqui não são, obviamente, as crianças que fomos, mas o que hoje lembramos e recriamos e reinventamos sobre o tempo da infância ...

«A arte consiste em fazer os outros sentir o que nós sentimos, em os libertar deles mesmos, propondo-lhes a nossa personalidade para especial libertação. O que sinto, na verdadeira substância com que o sinto, é absolutamente incomunicável; e quanto mais profundamente o sinto, tanto mais incomunicável é. Para que eu, pois, possa transmitir a outrem o que sinto, tenho que traduzir os meus sentimentos na linguagem dele [...]. E como este outrem é [...] aquela pessoa que é comum a todas as pessoas, o que, afinal, tenho que fazer é converter os meus sentimentos num sentimento humano típico, ainda que pervertendo a verdadeira natureza daquilo que senti. [...]

 Suponha-se que, por um motivo qualquer, que pode ser o cansaço de fazer contas ou o tédio de não ter que fazer, cai sobre mim uma tristeza vaga da vida, uma angústia de mim que me perturba e inquieta. Se vou traduzir esta emoção por frases que de perto a cinjam, quanto mais de perto a cinjo, mais a dou como propriamente minha, menos, portanto, a comunico a outros.[...]

Suponha-se, porém, que desejo comunicá-la a outros, isto é, fazer dela arte, pois a arte é a comunicação aos outros da nossa identidade íntima com eles [...] Procuro qual será a emoção humana vulgar que tenha o tom, o tipo, a forma desta emoção em que estou agora, pelas razões inumanas e particulares de ser um guarda-livros cansado ou um lisboeta aborrecido. E verifico que o tipo de emoção vulgar que produz, na alma vulgar, esta mesma emoção é a saudade da infância perdida.

Tenho a chave para a porta do meu tema. Escrevo e choro a minha infância perdida; demoro-me comovidamente sobre os pormenores de pessoas e mobília da velha casa na província; evoco a felicidade de não ter direitos nem deveres, de ser livre por não saber pensar nem sentir – e esta evocação, se for bem feita [..., vai despertar no meu leitor exatamente a emoção que eu senti, e que nada tinha com infância.

Menti? Não, compreendi [...]  assim como nos servimos de palavras [...] para traduzir os mais íntimos e subtis movimentos da emoção e do pensamento, que as palavras forçosamente não poderão nunca traduzir, assim nos servimos da mentira e da ficção para nos entendermos uns aos outros, o que, com a verdade, própria e intransmissível, se nunca poderia fazer»

In Livro do Desassossego, de Bernardo Soares/FernandoPessoa


Toda esta reflexão elaborada sobre a natureza da transfiguração do real em arte, do «fingimento poético» está já longe das quadras que Fernando Pessoa escreveu na infância, em 1895, ou mais tarde, sobre o tempo da infância:
 

Eis-me aqui em Portugal
Nas terras onde eu nasci
Por muito que goste delas
Ainda gosto mais de ti.
              ***
Ai, quem me dera no tempo
Em que o amar era um bem!
Ai, o amor do meu pai,
Os beijos da minha mãe!


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