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28 abril 2024

FIGURAS DE RETÓRICA (revisões)

FIGURAS DE RETÓRICA / RECURSOS EXPRESSIVOS
O conhecimento desta matéria não constituindo um fim em si, é um meio muito interessante e eficaz de acedermos à compreensão de usos mais elaborados do pensamento e do discurso. Mesmo do discurso científico, donde estes usos não estão ausentes. Repare-se nestes títulos de Ao Encontro de Espinosa, do cientista António Damásio: “Um Interruptor do Tronco Cerebral” (metáfora) ; “Um Pouco Mais de Riso e Algumas Lágrimas”  (contraste); “O Ver das Coisas” (nominalização do verbo); “E  Se o Mundo...? ”  (uso expressivo das reticências; suspensão; interrogação retórica)



Um conhecimento pobre das possibilidades/dos usos criativos da língua limita muito o número e o tipo dos livros, dos jornais, das revistas, das conferências, das conversas que conseguiremos compreender. Aqui fica alguma ajuda, que deves completar com a pesquisa pessoal.


Fica um complemento à informação do Manual, com algumas clarificações e exemplos.

Antítese

O esforço é grande e o homem é pequeno. F, Pessoa

Antítese – apresentação de um contraste entre duas ideias ou coisas, posto em evidência pela oposição das palavras que designam cada uma dessas ideias ou coisas; consiste, pois, em relacionar contrários. (do Gr. parádoxon < pará, contrário + doxa, opinião)

Ø Com mãos se faz a paz se faz a guerra. / Com mãos tudo se faz e se desfaz. (M. Alegre)

Ø O ser humano, como tudo, principia/Em noturna matéria que termina/ Num éter, numa luz (...)/num sensível clarão (Teixeira de Pascoaes)

Ø ...és rosa, primavera, sol, baixel/Para ser cinza, eclipse, incêndio, estrago. (F. Vasconcelos)

Ø Da tua vista se compunha o dia,/Da tua ausência a noite se formava(...)/Trocar-se em cinza morta a flama viva. ( A. Barbosa Bacelar)

Ø Se apartada do corpo a doce vida,/Domina em seu lugar a dura morte. (Violante do Céu)



Paradoxo (surge, muitas vezes, como sinónimo de oxímoro)

O Mito é nada que é tudo F. Pessoa

Paradoxo – Consiste em aplicar a uma mesma realidade termos inconciliáveis, destacando assim a sua complexidade; expressa-se uma contradição; há uma relação de contraditórios

Ø Aquela triste e leda madrugada (Camões)

Ø O doce fel do deleite, o acre prazer das dores (Garrett)

Ø Será brando o rigor, firme a mudança,/Humilde a presunção, vária a firmeza,/Fraco o valor, cobarde a fortaleza,/Triste o prazer, discreta a confiança(...)/Verdadeira a traição, falsa a verdade,/ Antes que vosso amor meu peito vença. (Violante do Céu)

. O Paradoxo é um enunciado indefinível quanto à sua veracidade ou falsidade.

Paradoxos de Russel: são proposições sobre proposições que resultam falsas quando aplicadas a si mesmas. O exemplo de Bertrand Russel foi o seguinte:

Numa folha de papel está escrito: o que se diz no verso desta folha é falso. Ao virar a folha, no verso deparamos com a afirmação: o que se diz no verso desta folha é falso.'

Um exemplo vindo da Antiguidade: 'Epimenides diz que todos os atenienses são mentirosos. Epimenides é ateniense, logo, o que ele diz é uma mentira e os atenienses não são mentirosos, logo ...'

Os paradoxos de Russel são muito usados, em especial no discurso filosófico. Alguns exemplos:

'’Só sei que nada sei.'; 'Palavras são palavras, apenas palavras.'



Oxímoro
O nome vem do Grego oxus, "afiado, agudo, penetrante", mais moros, "tolo, idiota", e teria sido criado pelos retóricos exatamente para designar essas expressões subtis e irónicas que parecem, à primeira vista, puro disparate ou contradição.

É uma figura da Retórica Clássica que consiste em combinar, numa só expressão, dois termos considerados antagónicos, obtendo-se, com essa combinação inusitada, uma série de efeitos literários e expressivos: um silêncio ensurdecedor, um supérfluo essencial, boatos fidedignos, espontaneidade calculada, mentiras sinceras, crescimento negativo.

O tipo mais frequente de oxímoro é formado pela união de um substantivo e de um adjetivo; existem, no entanto, formas mais extensas de composição, desde aquele lema dos movimentos de Maio de 68: "É proibido proibir"

A Literatura tem bons exemplos: um dos mais famosos sonetos da lírica de Luís de Camões, todo construído sobre oposições desse tipo: Amor é fogo que arde sem se ver, /É ferida que dói, e não se sente; /É um contentamento descontente, /É dor que desatina sem doer. (...)

Há oxímoros na literatura de todas as línguas, de todas as épocas. Na retórica moderna, e com uma intenção irónica, em vez de se usar a figura do oxímoro, usa-se o próprio termo, servindo-me dele para extrair um significado totalmente surpreendente de combinações corriqueiras de palavras. "Inteligência militar" é uma expressão conhecida e usada sem malícia; no entanto, quando Joseph Heller, no seu romance "Catch 22", diz que isso é um "oxímoro", o efeito crítico é devastador, porque o autor declara simplesmente que, para ele, inteligência e militar são termos contraditórios, que não deveriam andar juntos. O mesmo se passa com; Fulano de Tal, músico de rock - perdoem o oxímoro! - declarou... ; ou este: - A julgar pelo Brasil, televisão educativa não passa de um oxímoro.

Tautologia

É o enunciado que resulta sempre verdadeiro, não importa a veracidade das suas variáveis. Exemplos: Cada um é o que é.'; O que está feito está feito. '; Ou é ou não é.'

É referido com carácter pejorativo/crítico em relação a textos/discursos em que há um raciocínio viciado, porque não se argumenta capazmente ou se procede à repetição de um mesmo pensamento por palavras diferentes. Tautológico – redundante; repetitivo.

Apóstrofe (aparece, por vezes, como Vocativo, que é o elemento sintático que a traduz)

Apóstrofe – interpelação direta; é toda a invocação do recetor: Meu caro, veja se percebe; João, é de si que precisamos ; Não sei, meu amigo, se compreende...

Em posição inicial é seguida de vírgula; em posição intermédia surge entre vírgulas. Visa confirmar a transmissão (função fática) ou conseguir um ganho de intimidade pela reiteração da exclusividade do discurso, como se o recetor dissesse: é para si que estou falando (função apelativa) .

Interjeição

Eia todo o passado dentro do presente!/Eia todo o futuro já dentro de nós! eia! “ A . Campos, Ode Triunfal

Interjeições são ocorrências típicas do uso expressivo da linguagem. A interjeição não veicula uma mensagem, ela indica o estado de ânimo do emissor, exterioriza um estado emocional. Uma característica relevante da interjeição é a brevidade.

Tipos de interjeição:

Ø Há ocorrências que só aparecem no discurso como interjeições. Por exemplo: ‘Ah’, 'uai', 'ai', 'ui', ‘eia’, ‘irra’, 'caramba'.

Ø Há ocorrências que ora surgem como interjeição, ora como signos do uso comunicativo: 'Puxa', 'Raio(s)', ' Diabo(s)'. Neste caso há uma polissemia, em que uma das possibilidades de uso do termo é expressiva e outra comunicativa. Exemplo:

- Caiu um raio no pátio da escola e destruiu uma árvore. (intenção comunicativa);

- Que raio! Não percebo nada deste exercício. (intenção expressiva; traduz aborrecimento, irritação)

A origem das interjeições: as interjeições são signos e formam-se por mecanismos diversos como:

Ø Icónico. Imitam sons não fonológicos associados aos estados emocionais: 'ai', 'ui' , ‘ah’.

Ø Uso de palavras tabu. As interjeições que usam palavras tabu, como os palavrões, têm a característica adicional de serem uma rutura da sociabilidade.

Ø A partir de enunciados comunicativos relacionados com o estado de ânimo em questão. Exemplo: 'Por Deus', 'Nossa Senhora', 'Pelas barbas do profeta'. Nesses exemplos há uma mensagem, mas veicular esta mensagem não é o objetivo da interjeição.




Revisões: Formação de palavras

Para os alunos do 12º A que o solicitaram, aqui fica a revisão destas matérias.




Composição:

Definimos dois tipos:
  • a composição morfológica: formamos palavras através da associação de dois radicais (habitualmente de origem grega e/ou latina) ou de um radical e uma palavra. Esta associação faz-se, normalmente, através de uma vogal de ligação (psic+o+logia = psicologia; luso+descendente = lusodescendente).
  •  
  • composição morfossintática: a formação das palavras faz-se através da associação de duas ou mais palavras:
Ex: surdo-mudo; quebra-mar; homem-rã; fim de semana.

Vejamos alguns exemplos de composição morfológica:

Palavra
Descrição
Flexão
Exemplos
Psicotata
Radical + Radical
Só o 2.º elemento flexiona em número
o/a/(s) psicopata(s)
Infodependente
Radical + palavra
Só o 2.º elemento flexiona em número
o/a/ (s) infodependente(s)
Neurofisiologista
Radical + radical + radical
Só o 2.º elemento flexiona em número
o/a/(s) neurofisiologista (s)

Composição morfossintática 

Se ambas as palavras tiverem igual contributo para o valor semântico do composto, o contraste em género e a flexão em número atingem os dois elementos (exemplos 1 e 3 do quadro).

Por outro lado, se o valor semântico da palavra da esquerda for modificado pela da direita, o contraste de género e a flexão em número afetam apenas a palavra da esquerda (exemplos 2 e 4).

Ainda no caso de o composto ser constituído por uma forma verbal na 3ª pessoa do singular e por um nome, apenas flexiona o nome (exemplo 5).

Finalmente, não se verifica contraste em género nem flexão em número nos compostos constituídos verbo na 3ª pessoa e nome no plural (exemplo 6).

Vejamos alguns exemplos de composição morfossintática:
Palavra
Descrição
Flexão
Exemplos
1. Trabalhador-estudante
Nome + nome
Flexionam ambas as palavras em género e número.

Ele/ela /eles/elas é /são trabalhador(es) (a) (as) estudante(s).
2. Bomba-relógio
Nome + nome
Apenas a 1ª palavra flexiona em número.
Ele desarmadilhou duas bombas-relógio.
3. Surdo-mudo
Adjetivo + adjetivo
Flexionam ambas as palavras em género e número.
Ele/ela /eles/elas é /são surdo/os /as mudo(a) (os) (as).
4. Fim de semana
Nome + prep + nome
Apenas a 1ª palavra flexiona em número.
Passo os fins de semana a trabalhar.
5. Picapau
Verbo + nome
Apenas a 2ª palavra varia em número.
Hoje, raramente se veem picapaus.
6. Saca-rolhas
Verbo + nome
Nenhuma das palavras flexiona.
Comprei dois saca-rolhas.


Fonte: Português, 8º ano, Consultório CEL (Conhecimento Explícito da Língua, em http://manualescolar2.0.sebenta.pt/projectos/lp8/posts/741, consultado em 2 de junho de 2012.


Relações entre palavras (revisão)

Retoma-se a abordagem desta matéria, para revisão e consolidação.



Para cabal esclarecimento da dúvida surgida sobre as relações entre palavras: hierarquia  v/s  inclusão (todo e parte), fica a síntese. 

ATENÇÃO: 
1) Os hipónimos  são dominados pelo mesmo hiperónimo. 

2) Numa cadeia hierárquica, um hiperónimo pode, por sua vez, ser hipónimo em relação a outra palavra: animal é hiperónimo de mamífero que, por sua vez, é hiperónimo de gato, cão, baleia, leão


RELAÇÕES FONÉTICAS E GRÁFICAS

Homonímia
Relações entre palavras que partilham a mesma grafia e a mesma pronúncia mas têm significados distintos.

Ex.: rio [curso de água] – do lat. rivu
rio [forma do verbo rir] – do lat. rideo

Homografia
Relações entre palavras que possuem a mesma forma gráfica, mas formas fonéticas diferentes e significados diferentes.
Ex.: colher (nome)
colher (verbo)

Homofonia
Relações entre palavras que se pronunciam da mesma maneira, mas apresentam grafia e significado diferentes.
Ex.: sem (preposição)
cem (quantificador numeral)

Paronímia
Relações entre palavras que têm sentidos diferentes, mas formas relativamente próximas.


Ex.: previdência [cautela, precaução]
providência [circunstância feliz]



RELAÇÕES SEMÂNTICAS

DE OPOSIÇÃO
Antonímia
Relação de oposição entre o significado de duas palavras.
Ex.: 
presença/ausência
calor / frio
novo/velho

DE HIERARQUIA
Hiperonímia / Hiponímia
Relação de hierarquia entre palavras que apresentam um sentido mais geral (hiperónimo) em relação a outras de significado mais restrito (hipónimos).
Ex.: flor
a)girassol

b margarida
c)orquídea

Sendo que a), b) e c) todas são flores. 

DE EQUIVALÊNCIA
Sinonímia
Relação de equivalência semântica entre duas ou mais palavras.
Ex.: casa:
– residência
– lar
– habitação

DE INCLUSÃO
Holonímia / Meronímia
Relação de inclusão entre palavras em que uma representa o todo (holónimo) e a(s) outra(s) a parte (merónimo(s)).
Ex.: corpo:
– cabeça
– braços
– pernas
– tronco



Vídeo de apoio - Estudo em Casa



Mais exercícios (que incluem correções):


24 abril 2024

Noções básicas de versificação

 Noções básicas de versificação

É uma matéria antiga, mas mais vale rever. Aqui fica a informação.

 Dá para comandar seus sonhos: entenda o sonho lúcido e como ...

22 abril 2024

25 de abril - «Viva a Liberdade!», sessão com as famílias

Projeto «Viva a Liberdade! - o antes e o depois do 25 de abril no pensamento, na condição física e na saúde física e mental dos portugueses» 

- 19 de abril - sessão pública de apresentação de trabalhos interdisciplinares realizados em colaboração com as famílias dos alunos das turmas 12º A, B e D da Escola Secundária Henriques Nogueira -

Cartazes de divulgação e de recolha de registos; poema criado por um avô para a sessão pública

50 cravos de abril



Cartaz da sessão e lembrança para os participantes (criação dos alunos das turmas 12ºB e 12ºA, respetivamente)


Delegadas das turmas A, B e D, responsáveis pelas comunicações 
de abertura e de encerramento dos trabalhos


Alunos das três turmas apresentaram uma seleção de trabalhos realizados 
em Português, Biologia, Física e Educação Física

Painel de oradores convidados a dar testemunho da sua experiência associada ao 25 de abril - o investigador Venerando Matos, Carlos Ferreira, integrante da coluna de Salgueiro Maia, e os familiares de alunos - António Pinheiro, então jovem em serviço militar, e Mateus Pereira, à data emigrante no Canadá. 


Delegadas de Turma encerram os trabalhos.


O nosso auditório, constituído por alunos, pais e avós e outros membros da comunidade escolar



Exposição de trabalhos das três turmas, em vários suportes, incluindo áudios e vídeos com os testemunhos dos avós e outros familiares.  







18 abril 2024

Poetas contemporâneos e os seus leitores

Começamos hoje  a publicar os poemas selecionados pelos vários pares e as respetivas propostas de leitura. Estas publicações alargam e substituem a informação dispersa em vários comentários. Os contributos são publicados a par dos textos, de acordo com a autoria do trabalho.

Abaixo el-rei Sebastião
(Poema no Manual) 
É preciso enterrar el-rei Sebastião
é preciso dizer a toda a gente
que o Desejado já não pode vir.
É preciso quebrar na ideia e na canção
a guitarra fantástica e doente
que alguém trouxe de Alcácer Quibir.

Eu digo que está morto.
Deixai em paz el-rei Sebastião
deixai-o no desastre e na loucura.
Sem precisarmos de sair o porto
temos aqui à mão
a terra da aventura.

Vós que trazeis por dentro
de cada gesto
uma cansada humilhação
deixai falar na vossa voz a voz do vento
cantai em tom de grito e de protesto
matai dentro de vós el-rei Sebastião.

Quem vai tocar a rebate
os sinos de Portugal?
Poeta: é tempo de um punhal
por dentro da canção.
Que é preciso bater em quem nos bate
é preciso enterrar el-rei Sebastião.

                                                           Manuel Alegre
Manuel Alegre retrata o mito Sebastianista, ou seja como algo que se alojou no pensamento nacional como uma erva daninha que nos impossibilita de mudar e agir.
El-rei Sebastião simboliza, neste poema, o sonho e a loucura como na Mensagem, mas também a espera interminável da mudança, sendo então associada a uma dupla adjetivação: «a guitarra fantástica e doente / que alguém trouxe de Alcácer Quibir», esta guitarra que trouxeram de África «dá-nos música» e cria-nos uma ilusão fantástica e doente porque nos consome e não nos deixa atuar. No poema existe uma anáfora: «é preciso enterrar…/ é preciso dizer…/ é preciso quebrar/ é preciso bater…/ é preciso enterrar» que mostra a urgência da mudança, como algo indispensável.
D. Sebastião «está morto» e enterrado no passado: «Deixai em paz el-rei Sebastião»; devemos deixar de ficar focados no passado, pois o mesmo impossibilita-nos de viver o futuro, tema também retratado na peça Frei Luís de Sousa de Almeida Garrett. D. Madalena é o espelho desta situação, vivendo focada em D. João de Portugal, seu passado, não vivendo o seu presente e o seu futuro como poderia viver.
Manuel Alegre critica a sua sociedade repressiva dos anos 60 através do poema, encorajando-a a deixar D. Sebastião no passado e mudar, fazer com que «na nossa voz a voz do vento» soe ou, seja que tenha mais força a mudança do que os mitos e ideias fantásticas, tornando a vida mais real.
Para Manuel Alegre os poetas devem impulsionar esta ideia, são aqueles que devem colocar «um punhal dentro da canção», têm o dever de impelir esta mudança enfrentando medos.
Em suma, num tempo de inatividade, de sonhos impossíveis onde não há revolta, Manuel Alegre esperançoso, acredita que ainda vamos a tempo de mudar. A poesia tem esse papel, o de abrir os olhos à sociedade para a fazer mudar.

Aos Poetas

Somos nós
As humanas cigarras.
Nós,
Desde o tempo de Esopo conhecidos...
Nós,
Preguiçosos insectos perseguidos.

Somos nós os ridículos comparsas
Da fábula burguesa da formiga.
Nós, a tribo faminta de ciganos
Que se abriga
Ao luar.
Nós, que nunca passamos,
A passar...

Somos nós, e só nós podemos ter
Asas sonoras.
Asas que em certas horas
Palpitam.
Asas que morrem, mas que ressuscitam
Da sepultura.
E que da planura
Da seara
Erguem a um campo de maior altura
A mão que só altura semeara.

Por isso a vós, Poetas, eu levanto
A taça fraternal deste meu canto,
E bebo em vossa honra o doce vinho
Da amizade e da paz.
Vinho que não é meu,
Mas sim do mosto que a beleza traz.

E vos digo e conjuro que canteis.
Que sejais menestréis
Duma gesta de amor universal.
Duma epopeia que não tenha reis,
Mas homens de tamanho natural.

Homens de toda a terra sem fronteiras.
De todos os feitios e maneiras,
Da cor que o sol lhes deu à flor da pele.
Crias de Adão e Eva verdadeiras.
Homens da torre de Babel.

Homens do dia-a-dia
Que levantem paredes de ilusão.
Homens de pés no chão,
Que se calcem de sonho e de poesia
Pela graça infantil da vossa mão.

                                                                     Miguel Torga, in 'Odes'
Aos poetas
Miguel Torga no poema «Aos Poetas» faz uma alusão à Fábula da cigarra e da Formiga de Esopo, escritor da Grécia Antiga, do século VI a.C., comparando os poetas às cigarras. À imagem delas os poetas são aqueles que têm o dever de cantar para a sociedade, tornando-a mais bela. A referência à cultura cigana remete-nos para uma ideia de mudança, para os que não se deixam ficar no mesmo sítio pois o povo cigano é nómada.
Segundo Miguel Torga, são os poetas que têm «asas sonoras», que têm o dever de cantar sobre a amizade, a paz e o amor universal, «de todos os feitios e maneiras», pois somos todos «Crias de Adão e Eva» e «Homens da torre de Babel», ou seja de todas as línguas e culturas, independentemente «Da cor que o sol lhes deu à flor da pele». O sujeito poético expressa a sua opinião acerca da natureza da poesia e do ofício de poeta: «Somos nós …» os poetas quem tem esse dever - o de realçar a nossa comum humanidade, a fraternidade universal. 

Emprego e desemprego do poeta 
 Deixai que em suas mãos cresça o poema
como o som do avião no céu sem nuvens
ou no surdo verão as manhãs de domingo
Não lhe digais que é mão-de-obra a mais
que o tempo não está para a poesia

Publicar versos em jornais que tiram milhares
talvez até alguns milhões de exemplares
haverá coisa que se lhe compare?
Grandes mulheres como semiramis
públia hortênsia de castro ou vitória colonna
todas aquelas que mais íntimo morreram
não fizeram tanto por se imortalizar

Oh que agradável não é ver um poeta em exercício
chegar mesmo a fazer versos a pedido
versos que ao lê-los o mais arguto crítico em vão procuraria
quem evitasse a guerra maiúsculas-minúsculas melhor
Bem mais do que a harmonia entre os irmãos
o poeta em exercício é como azeite precioso derramado
na cabeça e na barba de aarão (1)

Chorai profissionais da caridade
pelo pobre poeta aposentado
que já nem sabe onde ir buscar os versos
Abandonado pela poesia
oh como são compridos para ele os dias
nem mesmo sabe aonde pôr as mãos

Ruy Belo, in "Aquele Grande Rio Eufrates"

(1) figura bíblica, comum às três grandes religiões; irmão de Moisés.

Emprego e desemprego do poeta
No poema de Ruy Belo, existe uma crítica a algum tipo de poetas. Segundo o sujeito, o poeta deve deixar crescer o poema, e não se desculpar para não o fazer, uma vez que a poesia está em tudo o que vemos. O poeta deve escrever pelo amor ao seu ofício, não para «Publicar versos em jornais que tiram milhares» ou «chegar mesmo a fazer versos a pedido».
Ruy Belo faz uso de nomes de várias poetisas importantes da Antiguidade ao século XVI (casos da humanista portuguesa Públia Hortênsia de Castro ou da italiana Vittoria Colonna) as quais escreviam pelo gosto de o fazer sendo conhecidas por isso mesmo, instigando os poetas modernos a segui-las enquanto modelo. Existe uma comparação no poema: «o poeta em exercício é como azeite precioso derramado/ na cabeça e na barba de aarão», enaltecendo o poeta, dizendo que o mesmo tem o dom e foi escolhido para a poesia (no Salmo 133,  David apresenta  a cena da unção do sacerdote Arão. O óleo “precioso” para ungir conhecido como “o óleo da santa unção” é derramado na sua cabeça e desce-lhe pelas barbas até às vestes).

17 abril 2024

Poetas contemporâneos - leituras (Eugénio de A. e Ruy Belo)

 Ruy Belo (1933-1978)
Nascido em Rio Maior, foi um poeta e ensaísta português. Estudou Direito em Coimbra e em Lisboa, tendo ido para Roma logo de seguida, onde tirou um doutoramento em Direito Canónico. Foi diretor literário da Editorial Aster, chefe de redação da revista Rumo e exerceu um cargo de diretor-adjunto no Ministério da Educação Nacional. Escreveu sobre a religião e a metafísica, sob a forma de interrogações acerca da existência, como em Boca Bilingue (1966), Homem de Palavra (s) (1969) e País possível (1973). Nos seus poemas conjugam-se domínios das técnicas poéticas tradicionais. A sua obra Obra poética de Ruy Belo (1981) é considerada uma das obras cimeiras da poesia portuguesa contemporânea.




Soneto Superdesenvolvido
É tão suave ter bons sentimentos,
consola tanto a alma de quem os tem,
que as boas acções são inesquecíveis momentos
e é um prazer fazer o bem.


Por isso, quando no Verão se chega a uma esplanada
sabe melhor dar esmola que beber a laranjada,
consola mais viver entre os muito pobres
que conviver com gente a quem não falta nada.


E ao fim de tantos anos a dar do que é seu,
independentemente da maneira como se alcançou,
ainda por cima se tem lugar garantido no céu,
gozo acrescido ao muito que se gozou.


Teria este ... se não tivesse outro sentido,
ser natural de um país subdesenvolvido.
                                                         Ruy Belo

Constituído por 3 quadras e um dístico, este poema insere-se na obra intitulada  País Possível (1973) que tem como tema principal a vida num Portugal opressivo, anterior à Revolução de Abril. É abordado como um país real onde são destacados os seus princípios e figuras principais, convidando a uma reflexão sobre o Portugal futuro, a uma outra alternativa de país.
Neste poema, o autor ironiza a atitude de caridade por parte das classes sociais mais altas e de resignação por parte dos pobres pois não há lugar nem voz para estes: servem apenas como um meio pela qual os mais ricos podem realizar boas ações e garantirem a sua satisfação pessoal. Ou seja, através do humor, são desvendadas as verdadeiras intenções da caridade das pessoas: para além de garantir consolo pessoal, abre também caminho para a aquisição de benefícios numa outra vida pois “independentemente da maneira como se alcançou,/ ainda por cima se tem lugar garantido no céu,/ gozo acrescido ao muito que se gozou.” Afinal de contas, tudo isto é “natural de um país subdesenvolvido”.


Eugénio de Andrade (1923-2005)
José Fontinhas, nascido no Fundão, frequentou o Liceu Passos Manuel, em Lisboa, tendo escrito os seus primeiros poemas com apenas 13 anos de idade e publicado o seu primeiro livro em 1940, Narciso. Completou o seu serviço militar em Coimbra e, posteriormente, regressou a Lisboa e tornou-se Inspetor Administrativo do Ministério da Saúde. Travou diversas amizades com personalidades portuguesas e estrangeiras como Miguel Torga, Sophia de Mello Breyner Andersen e Marguerite Yourcenar. Ganhou inúmeros prémios nacionais e internacionais, entre eles o Prémio Camões, em 2001. Algumas das suas obras são As mãos e os frutos (1948), Os amantes sem dinheiro (1950), Branco no branco (1984), Ofício de paciência (1994) e O sal da língua (1995). 
No dizer do poeta e crítico Pedro Mexia, é "Um poeta que entendeu a poesia como um instrumento da alegria."








   

Poema à mãe

 No mais fundo de ti,
eu sei que traí, mãe

Tudo porque já não sou
o retrato adormecido
no fundo dos teus olhos.

Tudo porque tu ignoras
que há leitos onde o frio não se demora
e noites rumorosas de águas matinais.

Por isso, às vezes, as palavras que te digo
são duras, mãe,
e o nosso amor é infeliz.

Tudo porque perdi as rosas brancas
que apertava junto ao coração
no retrato da moldura.

Se soubesses como ainda amo as rosas,
talvez não enchesses as horas de pesadelos.

Mas tu esqueceste muita coisa;
esqueceste que as minhas pernas cresceram,
que todo o meu corpo cresceu,
e até o meu coração
ficou enorme, mãe!

Olha — queres ouvir-me? —
às vezes ainda sou o menino
que adormeceu nos teus olhos;

ainda aperto contra o coração
rosas tão brancas
como as que tens na moldura;

ainda oiço a tua voz:
          Era uma vez uma princesa
          no meio de um laranjal...


Mas — tu sabes — a noite é enorme,
e todo o meu corpo cresceu.
Eu saí da moldura,
dei às aves os meus olhos a beber,

Não me esqueci de nada, mãe.
Guardo a tua voz dentro de mim.
E deixo-te as rosas.

Boa noite. Eu vou com as aves.

Eugénio de Andrade, in "Os Amantes Sem Dinheiro"

Leitura 1. (Luana e Márcia) 
Este poema, inserido na obra Os amantes sem dinheiro (1950), aborda o tema da relação entre mãe e filho, numa idade já mais avançada deste, em que já não é a criança a que a mãe estava habituada e, agora, restam apenas as recordações daquilo por que passaram, guardadas na memória de cada um. São-nos apresentadas perspetivas do presente e do passado: no passado, era uma criança feliz, onde o amor que recebia era exclusivo; ao contrário do presente, em que  é um jovem adulto com necessidade de um outro amor.
O autor convida-nos a uma reflexão acerca da nossa evolução, revelando um sentimento de culpa apontado às causas do desencontro afetivo, que era inevitáveis, acabando o poema com uma despedida da figura materna, dizendo “Boa noite. Eu vou com as aves.” que representa a separação física e psicológica da sua infância. 

Leitura 2. (Nuno e Tiago)
Há uma relação entre mãe e filho que foi traída pelo crescimento do último bem como pela sua vontade de descobrir o mundo para além dos seus horizontes. A mãe quer que este não se vá; porém, o filho, que pode ser interpretado como o próprio Eugénio de Andrade devido à semelhança entre poeta e sujeito poético, decide ir-se embora com as memórias do passado e o amor à sua progenitora.


Alexandre O’Neill (1924-1986)
Nascido em Lisboa, foi um poeta do movimento surrealista português, tendo publicado os seus primeiros poemas com apenas 17 anos mas só foi reconhecido como poeta em 1958 com a publicação No reino da Dinamarca. Para além de poesia, dedicou-se também a prosa, traduções e publicidade. Os seus textos têm como característica uma grande sátira a Portugal e aos portugueses. Trabalhou ainda temas como a solidão, o amor, o sonho e a passagem do tempo. Possui obras como Poemas com endereço (1962), As andorinhas não têm restaurante (1970), Entre a cortina e a vidraça (1972) e Uma coisa em forma de assim (1980).

Seis poemas confiados à memória de Nora Mitrani
                                         Nora Mitrani - A Paixão Ardente.  Fotógrafo:Fernando Lemos, 1949
V
Eu estava bom p’ra morrer
nesse dia.
Não tinha fome nem sede,
nem alarme ou agonia.

Eu estava tal como está
esse que perdeu a amiga,
o homem que sofreu já
tanto (nem se imagina!)

que ficou bem atestado
de fadiga
e copiou-se em alegre,
mas de uma torpe alegria,

que não era mesmo alegre,
mas alegre se fingia
só para enganar o morto
que dentro de si trazia.

Este é um modo de dizer
em que ninguém acredita,
mas não sei melhor dizer:
era assim que eu me sentia!

A solidão o que era?
O amor o que seria?
Já ninguém à minha espera,
para nenhures é que eu ia.

Eu estava bom p’ra morrer
— e ainda hoje morria…
Assim me quisesses dar
e tirar — só tu! — a vida.
                                           Alexandre O’Neill

Este poema encontra-se na obra Poemas com endereço (1962) e faz parte de um conjunto de poemas que o autor escreveu dedicados a Nora Mitrani, uma grande paixão sua, que se suicidou em 1961, deixando O’Neill com um grande desgosto. 
O sujeito poético diz-nos que estava pronto para morrer com a sua amada mas que a vida assim não o quis e que continua cá, fingindo ser feliz  - "não era mesmo alegre/mas alegre se fingia" - quando, no fundo, já ele próprio está morto:"o morto que dentro de si trazia". Mostra-nos um sofrimento profundo de alguém que acabou de perder uma pessoa bastante chegada a si e que agora se encontra sozinho, “Já ninguém à minha espera”.

Luana e Márcia