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15 março 2021

MEMORIAL DO CONVENTO - Blimunda - «O meu dom não é heresia, nem é feitiçaria» (entrevista)

Blimunda é uma das personagens principais do livro Memorial do Convento, da autoria de José Saramago. É a personagem mais misteriosa da obra visto que possui um dom, de ver por dentro das coisas e das pessoas, e uns olhos que ora são claros de cinzento, verdes, azuis, ora são negros ou brancos. Desenvolve uma relação não sacramentada com Baltasar, mas fundeada num amor bastante profundo e vai ser imprescindível na construção da passarola, visto que é ela que vai recolher as vontades que a farão subir aos céus.

Que tipo de dom é o seu, Blimunda? 

 “O meu dom não é heresia, nem é feitiçaria, os meus olhos são naturais (...)  eu só vejo o que está no mundo, não vejo o que é de fora dele, céu ou inferno, não digo rezas, não faço passes de mãos, só vejo (...) o que está dentro dos corpos, e às vezes o que está no interior da terra, vejo o que está por baixo da pele, e às vezes mesmo por baixo das roupas, mas só vejo quando estou em jejum, perco o dom quando muda o quarto da lua, mas volta logo a seguir, quem me dera que o não tivesse(...) porque o que a pele esconde nunca é bom de ver-se”. 

Quando e onde conheceu Baltasar-Sete-Sóis e em que altura passaram a viver juntos? 

Conheci Baltasar em 1711, tinha eu 19 anos e ele 26 anos, estávamos no Rossio. A minha mãe estava no auto-de-fé, ia ser degredada para Angola por ter visões e ao meu lado estava o padre Bartolomeu e Baltasar, que até então não conhecia. Foi eu que me introduzi e lhe perguntei “Que nome é o seu”, pois “minha mãe o quis saber e queria que eu o soubesse”, mas não me pergunte como  soube que era essa a sua intenção, “Sei que sei, não sei como sei”. Comecei a viver com Baltasar na mesma noite desse dia. Jantámos juntos em minha casa na companhia do padre Bartolomeu. Baltasar disse-me que queria ir para junto da família, em Mafra, mas que eu lhe tinha deitado um encanto e olhado por dentro e por isso, como eu insisti para que ele ficasse, ele perguntou-me onde dormiria, e eu respondi “Comigo”. Nessa noite deitámo-nos juntos e eu marquei-lhe o peito com o meu sangue. Também lhe fiz uma promessa -”Juro que nunca te olharei por dentro” -, apesar de ele não se ter apercebido do significado nem da sua pergunta nem da resposta, pois não deveria ser necessário conhecer todos os aspetos de uma pessoa para a amar deforma plena, foi por isso que fiz essa promessa. 

 Qual foi o seu tipo de união com Baltasar e como lhe deu a conhecer o seu dom? 

Nós fomos sempre um “casal ilegítimo por [nossa] própria vontade” Baltasar até disse ao padre Bartolomeu, quando ele o aconselhou a casar-se comigo, - “Ela não quer, eu não sei se quereria”. A nossa união foi no entanto marcada por mim, no peito de Baltasar, com o meu sangue na primeira noite em que nos deitámos juntos, e pelo padre Bartolomeu que me deu o nome de Sete-Luas. Esta persignação e o facto de eu acordar sempre de olhos fechados e só depois os abrir depois de comer levou Baltasar a um dia tirar-me o pão para eu lhe explicar “que segredos  são estes”. Ele acabou por me dar o pão e eu depois respondi-lhe “Não sabias o que estavas a dizer, nem soubeste que estavas a ouvir quando eu te disse que nunca te olharia por dentro. (...) Eu posso olhar por dentro das pessoas.”. Baltasar disse “Como hei de ter a certeza” e também me questionou acerca da cruz que lhe fiz no peito, e eu retorqui “Amanhã não comerei quando acordar, sairemos depois de casa e eu vou-te dizer o que vir (...) Sangue de virgindade é água de batismo, soube que o era quando me rompeste, e quando o senti correr adivinhei os gestos”.

Qual foi o seu papel na construção da passarola?

Logo no princípio da construção da passarola “[levantava-me] mais cedo, antes de comer o pão de todas as manhãs, e, deslizando ao longo da parede para evitar pôr os olhos em Baltasar [afastava] o pano [para] inspecionar a obra feita, descobrir a fraqueza escondida do entrançado, a bolha de ar no interior do ferro”. No entanto, o meu maior contributo foi a capacidade que eu tinha para ver as vontades dentro das pessoas, que me ajudava a recolhê-las, pois estas foram necessárias para colocar a passarola no céu. Recolhi, juntamente com Baltasar, em Lisboa, durante a epidemia, o maior número de vontades. “Quando a epidemia terminou, já iam rareando os casos mortais e de repente passara-se a morrer doutra coisa, havia, bem contadas, duas mil vontades nos frascos. Então, [caí]doente.”. “Durante uma semana, todos os dias, (...)[ o senhor Escarlate] foi tocar duas, três horas, até que [tive] forças para levantar-[me] (...) Depois, a saúde voltou depressa”. 

Como foi sobrevoar Mafra na passarola? 

“Não [tínhamos] medo, [estávamos] apenas assustados com a [nossa] própria coragem. O padre ria, dava gritos (...) e percorria o convés da máquina de um lado a outro para poder olhar a terra em todos os seus pontos cardeais, (...) Baltasar gritou, Conseguimos, abraçou-se a [mim] e desatou a chorar, parecia uma criança perdida, um soldado que andou na guerra, que nos Pegões matou um homem com o seu espigão, e [na altura][soluçava] de felicidade abraçado a [mim], [enquanto lhe beijava] a cara suja”. Não existe nada de mais maravilhoso que ver o nosso sonho a ganhar asas com o trabalho das próprias mãos porque “os homens são anjos nascidos sem asas, é o que há de mais bonito, nascer sem asas e fazê-las crescer”. 

Como foi a sua procura por Baltasar, depois de ele ter desaparecido, e o vosso reencontro? 

Baltasar tinha ido a Monte Junto para saber da passarola, pois foi lá que ela se despenhou, e nessa noite ele não voltou. Não consegui dormir e saí à sua procura na esperança de que o iria encontrar. No entanto, não o encontrei e andei nove anos à sua procura. “[Conheci] todos os caminhos do pó e da lama (...). Onde chegava perguntava se tinham visto por ali um homem com estes e estes sinais, a mão esquerda a menos”. [Porém], foi em Lisboa que o encontrei, à sétima vez que lá passei, durante um auto-de-fé. Ardia um homem a que faltava a mão esquerda, o meu Baltasar e então eu disse “Vem. Desprendeu-se a vontade de Baltasar (...), mas não subiu para as estrelas, se [a mim me pertencia]”, e a sua vontade está comigo até hoje.

 

Miguel Matias, 12ºA

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