Aos 19 anos, a vida de Blimunda de Jesus, uma das personagens centrais do romance Memorial do Convento, de José Saramago, é virada do avesso, ficando longe da mãe e conhecendo um homem com cria uma ligação eterna, por quem deixa o pouco que tem e segue sem restrições.
Como descreveria o seu início de relação tão profunda com Baltasar Mateus?
Lembro-me como se fosse hoje, perguntei a Baltasar “Que nome é o seu” (p. 56) apenas “porque minha mãe o quis saber e queria que eu o soubesse” (p. 59). A situação era, no mínimo, estranha, já que “ali [ia] a minha mãe” (p. 57), “condenada a ser açoitada em público e a oito anos de degredo em Angola”, mas na altura, “[soube] que [soube], não [soube] porque [soube]” ser essa a vontade de minha mãe. Depois daquilo que para a maioria da população é uma festa, o auto de fé, fui para casa e Baltasar seguiu-me, coloquei ao lume uma panela de sopas e dei-lhas. Bartolomeu Lourenço também lá estava e declarou-nos casados da forma mais simples possível: “Aceitas para a tua boca a colher de que se serviu a boca deste homem, fazendo seu o que era teu, agora tornando a ser teu o que foi dele, e tantas vezes que se perca o sentido do teu e do meu (…) Então declaro-vos casados” (p. 59).
Após várias horas de silêncio, Baltasar veio conversar comigo, para tentar saber porque foi que lhe perguntei o nome, não sabia explicar. Ele disse que tinha intenções de ir para Mafra, mas não de imediato, por enquanto ficaria em minha casa. Ele disse, sem saber do que falava, “Olhaste-me por dentro”, ao que respondi “Juro que nunca te olharei por dentro”, cheia de intenções de cumprir essa promessa até ao fim dos nossos dias.
O que veio depois disso foi entrega total, dei-lhe tudo de mim e recebi tudo dele, marquei-o como nunca mais poderei marcar ninguém, “[fiz] uma cruz no peito de Baltasar”(p. 60), “a cruz e o sinal feitos com o sangue da virgindade rasgada” (p. 79). Talvez a nossa união não seja legítima, “talvez ande por aqui obra de outro mais secreto sacramento” (p. 79) mas bendita seja a nossa união não sacramentada, “se a ele apeteceu, a [mim] apetecerá, e se [eu] quis, quererá ele” (p. 79).
Referiu que fez uma promessa a Baltasar e que este falava sem entender o significado das suas palavras. Em que consiste essa promessa e como passou ele a entender o que queria dizer?
Todos os dias, ao acordar e antes de abrir os olhos, eu comia pão que deixava ao lado da cama, e isso foi deixando Baltasar desconfiado e um dia, quando acordei, estendi “a mão para o saquitel (…) e [achei] apenas o lugar” (p. 80). Ele não fazia mesmo ideia do que significava tirar-me aquele pão. Era chegada a hora, ele tinha de saber para entender porque eu ajo assim: “eu posso olhar por dentro das pessoas” (p. 81). É claro, não acreditou à primeira e tive de prometer que no dia seguinte não comeria ao acordar e iria dizer-lhe tudo o que vir, apenas não poderia olhar para ele.
No dia seguinte, fiz como prometido e contei-lhe o que ia vendo, mas eu estava a referir-me ao que via nas pessoas e isso ele não podia confirmar, então disse-lhe que cavasse um buraco com o espigão, e nele encontraria uma moeda de prata. Ele disse que eu me tinha enganado, “a moeda [era] de ouro” (p. 85), eu sempre confundi estes dois metais, talvez por não ter mexido em muitos ao longo da vida. Foi assim que Baltasar passou a entender o meu dom.
Anteriormente, mencionou o padre Bartolomeu de Gusmão, o “Voador” que planeou a passarola. Quais foram as suas contribuições para o voo desta “ave”?
É verdade, a passarola foi construída na quinta do Duque de Aveiro, em S. Sebastião da Pedreira e “uma vez por outra [levantava-me] mais cedo, antes de comer o pão de todas as manhãs (…) e [ia] inspecionar a obra feita, descobrir a fraqueza escondida do entrançado, a bolha de ar no interior do ferro”. O meu dom foi também útil na recolha das vontades, que são nuvens fechadas sobre o estômago e permitem que que um dia a passarola voe. Bartolomeu disse: “Andarás sempre com [uma pastilha de âmbar amarelo] por onde andarem pessoas, em procissões, em autos de fé, aqui nas obras do convento, e quando vires que a nuvem vai sair de dentro delas, está sempre a suceder, aproximas o frasco e a vontade entrará nele” (p. 136). Assim foi e tentei recolher tantas vontades quanto podia, mas não era suficiente.
Os locais mais comuns não tinham as vontades a desprender-se das pessoas com tanta facilidade, pelo que era tempo de ir para onde as pessoas estão mais vulneráveis, nomeadamente à procissão do Corpo de Deus, esse foi “dia de cegueira” (p. 171). Depois disso, houve uma grande epidemia, “quatro mil pessoas [mortas] em três meses” (p. 197) e fui percorrer aldeias, em jejum, sempre com Baltasar mas nunca podendo vê-lo, e como isso custava. Em algumas das casas onde fui, “já não havia vontade nem alma, apenas o corpo morto, algumas lágrimas ou muito alarido” (p. 197).
Felizmente, a epidemia passou e muitas vontades foram recolhidas, mas a doença veio ter comigo.
Como foi curada essa doença e qual a sua relação com o curandeiro?
Nunca me esquecerei da forma como “Domenico Scarlatti ficou na quinta, tocando horas e horas, até de madrugada” (p. 202) e “durante uma semana, todos os dias, sofrendo o vento e a chuva pelos caminhos alagados de S. Sebastião da Pedreira, o músico foi tocar duas, três horas, até que [tive] forças para me levantar, [sentava-me] ao pé do cravo, pálida ainda, rodeada de música como se mergulhasse num profundo mar” (p. 203). Aquela música foi a minha salvação.
O senhor Escarlate apareceu num dia em que eu “tinha brincos de cerejas nas orelhas, trazia-as assim para (…) mostrar a Baltasar, e por isso [fui] para ele, sorrindo e oferecendo o cesto” (p. 184). Ele tornou-se um de nós, éramos um quarteto fantástico: Bartolomeu idealizou a passarola, Baltasar usa a sua força para a construir, eu recolho o que é necessário para que ela voe e o senhor Escarlate toca para nós.
Foi também o portador da má nova que, embora esperada, pois eu sabia que Bartolomeu se tinha ido “embora, não o [tornaríamos] a ver” (p. 226), nos entristeceu imenso: “o padre Bartolomeu de Gusmão morreu em Toledo, que é em Espanha, para onde tinha fugido, dizem que louco” (p. 246). Depois disso, foi ele que disse para não desistirmos da passarola.
Maldita a hora em que assim foi, talvez o meu Baltasar estivesse aqui…
Infelizmente, foi separada de Baltasar, como diria que foi todo o seu percurso até o voltar a ver?
Nunca pensei passar por tanto, a verdade é essa.
Fui enganada por um frade, que me tentou alertar para os perigos da noite sozinha quando afinal o maior perigo era ele. Reparei num vulto e, quando me apercebi, estava o frade a afastar-me “devagarinho as pernas, (…) as saias foram atiradas para cima, já o hábito arregaçado” (p. 386) e ainda bem que tinha o espigão de Baltasar. Enterrei-o com tudo o que tinha entre as costelas do frade. Fiquei “aterrada, não por ter matado, mas por sentir aquele peso, duas vezes esmagador” (p. 386). “Quando ia sair dali, [olhei] para trás e [vi] que o frade tinha umas sandálias calçadas” (p. 387). Apenas me lembro de pensar que “homem morto vai por seu pé aonde tiver que ir, inferno ou paraíso” e tirei-lhas.
Passei por várias aldeias a perguntar se alguém tinha visto o meu Baltasar, sem a mão esquerda, e “aconteceu[-me] ser apedrejada, escarnecida (…) [e], numa aldeia onde [me] maltrataram (…), havia (…) grande secura de água (…), após ter sido expulsa, [percorri] os arredores usando o jejum e a vidência (…) e posta no meio da praça [gritei] que em tal sítio e a tal profundidade corria um veio de água pura” (p. 397) e por isso ganhei outra alcunha para além de “Sete-Luas”: “Olhos-de-Água”.
Infelizmente, não voltei a encontrar Baltasar nas melhores circunstâncias. Eu sabia, sem saber porquê, que tinha de estar em jejum, era chegada a hora. “Havia multidão em S. Domingos (…) [e no] extremo [ardia] um homem a quem falta a mão esquerda” (pp. 399-400). Dele, apenas fiquei com a sua vontade.
B. Roque
Referência bibliográfica: Saramago, José, Memorial do Convento, 61ª edição, Lisboa, Porto Editora, 2019
Imagem: Baltasar e Blimunda na adaptação ao Teatro do romance Memorial do Convento, pela companhia Éter Produção Cultural, que se dedica a criar peças de teatro em torno da cultura portuguesa.
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