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10 março 2021

MEMORIAL DO CONVENTO - Blimunda: «Eu tenho um dom»

Entrevista com Blimunda

Repórter: Bom dia, estamos aqui em direto do Jornal das Coscuvilhices onde vamos entrevistar Blimunda, uma das personagens do livro de José Saramago,  Memorial do Convento, com uma grande aparição durante todo o romance. Além de servir como representante do povo mais pobre e protagonista de um amor verdadeiro e livre, como distinção do casamento da realeza, arranjado sem afeto. Indo direta ao assunto, antes de vir para aqui, vi-a nos bastidores comer pão de olhos fechados, tem algum motivo em especial?

(A repórter fica sentada numa das poltronas à frente de Blimunda que se ajeita em sua poltrona ainda admirada com as novidades do novo mundo que nunca havia sonhado ver iguais em seu tempo. Por fim, responde, calmamente).

Blimunda: Eu tenho um dom, diferente de minha mãe que tinha visões, eu vejo o que está no mundo, o que está dentro dos corpos. Não é heresia, nem feitiçaria, os meus olhos são naturais. E só o consigo usar se estiver em jejum, por isso é que como o pão sempre de olhos fechados.

R.: Inclusive, como referiu sobre a sua mãe, a última vez que a viu foi num auto-de-fé. Como se sentiu ao ver a sua mãe?

(Ao interrogar a Blimunda, a jornalista repara numa grande tristeza no fundo dos olhos dela. Como se não bastasse a tristeza, era como se tivesse tocado numa ferida profunda não cicatrizada até aos dias de hoje).

B.: Quando vi minha mãe, Sebastiana Maria de Jesus, eu não pude fazer nada. Apenas falar para o Padre Bartolomeu “Ali vai minha mãe”, pois se falasse ou demonstrasse alguma reação de afeto, tudo seria pior. Foi a última vez que a vi e nem consegui despedir-me. Ela foi açoitada em público e degredada a 8 anos para Angola. Minha mãe tinha o dom de ter visões e revelações, foi acusada de fingimento e de efeito demoníaco.

R.: Ainda assim, não era fingimento, ao que sabemos, tanto que ela sabia que Baltasar seria alguém importante na sua vida. Sentiu como se fosse o destino a unir duas almas? Afinal, por que perguntou o nome a Baltasar?

B.: Porque minha mãe o quis saber e queria que eu o soubesse, mesmo amordaçada, sei que sei, não sei como sei. Como referiu, talvez fosse o destino para ter alguém a quem zelar e que zelasse por mim.

R.: Além disso, alguns dos nossos espetadores estão curiosos para saber o porquê de ter desenhado uma cruz no peito, por cima do coração de Baltasar, com o sangue da sua virgindade.

B.: Sangue de virgindade é água de batismo. Não é feitiçaria como especulou Baltasar, antes de me conhecer melhor. Foi como se estivesse a estabelecer uma ligação única entre nós os dois, uma ligação de companheirismo e de união.

R.: É romântico da sua parte […] É preciso mais amor nos dias de hoje. Enfim, continuando com as perguntas, para aprofundar mais sobre o seu dom, que vantagens ele trouxe à sua jornada? […]

B.: Bem, ajudei na construção da passarola ao recolher as vontades. Foi uma missão difícil, recolhia menos de trinta, sendo as mais de homem pois parece que as vontades das mulheres resistem a separar-se do corpo. Como também via o interior dos materiais antes de comer o meu pão podia ver se estava tudo em ordem; quando não estava, como aconteceu a um ferro que tinha uma bolha de ar no meio, dizia para Baltasar que acreditasse cegamente em mim.

R.: Num assunto mais pesado, durante o desaparecimento de Baltasar, foi quase violada pelo padre. Pode comentar sobre esse assunto?

B.: Aquele padre aproveitou-se quando estava vulnerável e sozinha naqueles montes para me atacar, abrir-me as pernas, subir a minha saia e tentar fazer algo nojento. Por minha sorte, usei o espigão que guardava para o matar antes que o malvado fizesse algo sem meu consentimento. Depois de morto, roubei as sandálias dele, homem morto vai por seu pé aonde tiver que ir, inferno ou paraíso. Naqueles dias, ter sapatos era um luxo. Sai de lá o mais rápido possível, usando as sandálias dele, pois no início do dia seguinte iriam sentir falta do padre. Caminhei até o mais longe possível e livrei-me das sandálias antes que o diabo planeasse algo com elas contra mim. Desejosa, voltei para Mafra, depois de limpa nas águas do rio, esperando que Baltasar estivesse à minha espera. Não estava, infelizmente.

R.: Não queremos fazê-la reviver esses tristes momentos em que o voltou a encontrar para o perder para sempre...

B.: Não, não perdi, a vontade do meu Baltasar Sete-Sóis ficou porque à terra pertencia e a mim, sua Blimunda.

R.: Muito obrigada pela colaboração e pela sua sinceridade em partilhar connosco a sua inesquecível vida.

Beatriz Silva 12A




1 comentário:

Noémia Santos disse...


Até 3ª feira, 2 de março, 18h00.