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15 março 2021

MEMORIAL DO CONVENTO - Blimunda - «Eu posso olhar por dentro das pessoas.» (entrevista)


Blimunda de Jesus é uma mulher que, apesar de nova, já passou muitos momentos difíceis e sacrificantes. Blimunda tem um dom muito especial que se tornou fundamental para a construção da Passarola, projeto secreto que partilhou com o padre Bartolomeu Lourenço e o seu marido Baltasar Sete-Sóis, por quem sente um amor, lealdade e cumplicidade incondicionais. Iremos hoje entrevistá-la para conhecermos melhor a sua vida amorosa e familiar, a origem e utilidade do seu dom especial, o seu percurso de vida, as barreiras que a tentaram parar e o que a motivou a continuar.

Jornalista-  Bom dia Blimunda. Como está? Pode-nos falar um pouco sobre si e sobre a sua família?

Blimunda- Bom dia. Estou bem, obrigada. Claro que sim. Nasci Blimunda de Jesus, no entanto, agora chamam-me Sete-Luas, nome que me deu um padre meu amigo, o padre Bartolomeu Lourenço. Nasci e cresci na Costa do Castelo com minha mãe, Sebastiana Maria de Jesus. Éramos muito próximas até que quando eu tinha “Dezanove anos” e a levaram de mim, foi “condenada a ser açoitada em público e a oito anos de degredo no reino de Angola” por ter visões. Nada pude fazer quando a vi ser levada, tive de ser forte porque, apesar de muito a amar, fingir que não a conhecia e desprezá-la, era o que tinha que fazer para permanecer a salvo. A única coisa que disse ao padre foi “Ali vai minha mãe”, sem “nenhum suspiro, lágrima nenhuma, nem sequer o rosto compadecido”.

Jornalista- Sabemos que Blimunda não é uma mulher como as outras, tem um poder especial. De que se trata este dom que possui?

Blimunda- Nasci com um dom, “Eu posso olhar por dentro das pessoas. (...) O meu dom não é heresia, nem feitiço, os meus olhos são naturais, (...) eu só vejo o que está no mundo (...) Vejo o que está dentro dos corpos, e às vezes o que está no interior da terra, vejo o que está por baixo da pele, e às vezes mesmo por baixo das roupas, mas só vejo quando estou em jejum, perco o dom quando muda o quarto da lua, mas volta logo a seguir.”

Jornalista- É casada com Baltasar Mateus, também conhecido por Sete-Sóis. Assim que o viu, soube que era com ele que queria passar o resto da sua vida?

Blimunda- A primeira vez que o vi foi quando assistia à condenação de minha mãe. Senti-a a dizer-me para lhe perguntar quem era, então olhei para ele e simplesmente lhe perguntei “Que nome é o seu”. Ele respondeu-me que era Baltasar Mateus, podia não o ter feito, mas veio para minha casa com o padre. Foi nessa noite que Bartolomeu Lourenço nos casou pelo ritual da colher e eu soube que era com ele que queria passar o resto da minha vida. Sei que estava a viver um amor puro e verdadeiro desde que tivemos a primeira troca de palavras, “Sei que sei, não sei como sei”.

Jornalista- Teve um papel imprescindível na construção da passarola, projeto que juntamente com o padre e Sete-Sóis vos permitiu sobrevoar os céus. Qual era a sua função neste projeto? Conseguiu executá-la sem problemas?

Blimunda- Eu usava o meu dom para “inspecionar a obra feita”, para ver como se encontrava o seu interior e descobrir as suas fraquezas. Depois passei a ter uma outra função, a de recolher as vontades. Vontades estas que dentro das esferas de âmbar permitiam que a passarola levantasse voo. Não foi uma tarefa nada fácil, uma das duas coisas mais difíceis que fiz em toda a minha vida. Tive que recolher cerca de 2000 vontades. Andava pelas ruas durante a epidemia da cólera e da febre amarela para “recolher as vontades dos moribundos”. O padre tinha-me avisado que seria perigoso, mas eu tinha uma tarefa e ia cumpri-la pelo que lhe respondi com apenas uma palavra: “Irei”. Quando a epidemia terminou e após ter recolhido as 2000 vontades, caí doente. Foi Domenico Scarlatti, um músico, que tocava cravo, que me conseguiu curar com a sua música.

Jornalista- Referiu que a recolha das vontades fora uma das duas coisas mais difíceis que fizera em toda a sua vida. Qual foi a outra?

Blimunda- Quando o padre Bartolomeu Lourenço morreu, eu e Baltasar ficámos encarregues de dar continuidade ao sonho da Passarola. Baltasar ia várias vezes ao Montejunto cuidar da máquina e remendar os danos causados pelo tempo. Até que um dia ele foi e nunca mais voltou. Preocupada, fui pelo caminho que sabia e quando lá cheguei não o encontrei, nem a ele nem à máquina, tinham desaparecido. Iniciei assim uma busca incansável e dolorosa que durou nove anos. Andava noite e dia, um frade dominicano quis violar-me, percorri todas as terras à procura do meu amor, passei a ser conhecida por todos como a “Voadora, por causa da estranha história que contava”. Perdi a noção das estações e das léguas que fazia, o espaço e o tempo deixaram de ter significado. A sola dos meus pés “tornou-se espessa, fendida como uma cortiça”, até que finalmente o encontrei. Era a sétima vez que passara por Lisboa e a aragem noturna trouxe-me o cheiro a “carne queimada”. Naquele auto de fé eram “onze os suplicados”, nele via arder um homem a quem faltava a mão esquerda com uma nuvem fechada “no centro do seu corpo”. Era Baltasar. Apenas proferi a palavra “Vem” e “Desprendeu-se a vontade de Baltasar Sete-Sóis”, que ao contrário daquelas que recolhi, pertencia à terra e, acima de tudo, a mim.

Jornalista- Muito obrigada, Blimunda, nunca esqueceremos a sua história.

 

Autoria: Ema Conceição nº 1012º A

 

 

 

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