Total visualizações

15 março 2021

MEMORIAL DO CONVENTO - Blimunda - «Conheci todos os caminhos do pó e da lama» (entrevista)

Muito bom dia a todos, hoje estou aqui junto de uma das personagens centrais do romance Memorial do Convento, obra publicada em 1982 pelo escritor José Saramago. “Estive de olhos abertos na barriga da minha mãe, de lá via tudo.”, esta é uma das citações desta personagem que mais a caracteriza. E já devem ter percebido de quem estou a falar, sim, estou a falar de Blimunda de Jesus ou Sete-Luas.

Bom dia Blimunda, antes de mais nada, porquê Sete-Luas? Quem lhe deu esta alcunha?

Bom dia Teresa, esta alcunha surgiu por dois motivos. O primeiro tem a ver com a alcunha do meu amado parceiro, Baltazar Mateus, cuja alcunha é Sete-Sóis. Quanto ao segundo motivo, um dia estávamos eu, Baltazar e o Padre Bartolomeu Lourenço na missão de construir a passarola e, salvo erro, Baltazar, sabendo do meu dom, perguntou-me se um ferro poderia ser usado e eu respondi-lhe que não porque o ferro tinha uma racha por dentro. O Baltazar decidiu contar ao Padre Bartolomeu. Lembro-me como se fosse ontem, o Padre olhou para nós, sorriu e disse “Tu és Sete-Sóis porque vês às claras, tu serás Sete-Luas porque vês às escuras” e assim ficou até aos dias de hoje.

Já que a Blimunda referiu eu vou aproveitar para lhe questionar, como surgiu esse seu dom? Com realmente sabia que aquele ferro tinha uma racha?

Bom, é como a Teresa referiu bocado ao apresentar-me, aquilo que eu disse a Baltazar de ter estado de olhos abertos dentro da barriga da minha mãe e de ter visto tudo de lá é verdade. Acho que é algo que herdei da minha mãe, mas eu não podia dizer a ninguém porque poderia acontecer-me o mesmo que lhe aconteceu naquele auto de fé em que conheci Baltazar. Tinha medo de me manifestar, mas quando olhei para Baltazar senti que podia confiar nele. Passado muito tempo decidimos ajudar o Padre a construir a passarola e num dia eu olhei para esse tal ferro e consegui olhá-lo por dentro, tal como fazia com as pessoas, e vi que ele tinha uma racha.

Como era a sua relação com Baltazar Mateus? Quando descobriu que realmente o amava?

Eu senti amor à primeira vista. Conheci o Baltazar num dos momentos mais tristes da minha vida, no dia em que a minha mãe ia morrer naquele auto de fé. Eu e a minha mãe despedimo-nos em silêncio porque ninguém podia saber que eu era filha dela e ela disse-me para perguntar qual era o nome do rapaz que estava ao meu lado, e assim foi, eu perguntei-lhe o nome e ele respondeu-me que se chamava Baltazar. Quando acabou o auto de fé fui para casa e ele acompanhou-me. Entrei dentro de casa, mas senti que tinha de deixar a porta aberta para que ele pudesse entrar. Foi aí que tudo começou. Nós tínhamos uma relação linda, qualquer pessoa poderia invejá-la. Tínhamos muito afeto, carinho, confiança e o mais importante, éramos os melhores amigos um do outro. Um dos maiores votos de confiança que lhe dei foi  prometer--lhe que nunca o olharia por dentro.

Eu soube que a Blimunda fez algo inacreditável a um frade. Qual foi o motivo que a levou a tomar uma decisão tão drástica que a poderia prejudicar para o resto da vida?

Olha Teresa, eu nunca faria uma coisa assim se ele não tivesse feito algo comigo tão grave. Aliás, ele só não chegou a fazer nada comigo porque eu fui rápida a agir. Baltasar tinha ido(... ) a Monte Junto para pôr a passarola a voar, mas já se tinha passado dias e ele ainda não tinha ido para casa e eu decidi ir atrás dele. Fui para Monte Junto e lá encontrei a passarola, mas não havia indícios de lá estar Baltazar, apenas lá tinha um alforge que eu sabia que lhe pertencia. Decidi então que tinha de ir atrás dele. Sabia que ele poderia estar em qualquer parte, talvez morto, talvez vivo, mas ferido e, por isso, eu tinha de o encontrar e socorrê-lo, então continuei caminho fora e encontrei o frade. Já era tarde e o frade disse para eu ir até ao convento porque lá ao lado tinha umas ruínas de um convento que não chegou a ser construído, mas eu queria continuar, foi aí que ele disse que iria anoitecer logo logo e que eu me perderia na escuridão, algum lobo certamente me apanharia. Isso tudo me assustou um pouco e ao cair da noite, naquela imensa escuridão eu comecei a chorar, assustada com os barulhos noturnos e de repente corri até às ruínas. Grande a cilada em que me metia, mas eu não sabia e mesmo assim, era um sítio aparentemente seguro que me iria abrigar das rajadas de vento da noite, mas de repente eu comecei a ouvir uns barulhos vindos da ruína. Era o frade que viera do convento com desejo de mulher, no caso de mim. Então ele veio até mim, ajoelhou-se e começou a tatear os meus pés, afastou-me devagarinho as pernas, para um lado e para o outro, atirou as minhas saias para cima e a sua mão avançava. Foi então que eu empurrei o espigão até se enterrar entre as suas costelas e chegar num instante ao coração até à morte.

Creio que depois desse triste episódio, continuou a procurar Baltazar. A Blimunda conseguiu encontrá-lo?

Decidi partir numa jornada. Andei nove anos à procura do meu homem. Conheci todos os caminhos do pó e da lama, a branda areia, a pedra aguda, tantas vezes a geada rangente e assassina, dois nevões. Fui espantalho no meio de searas, aparição entre os moradores das vilas, susto nos pequenos lugares e nos casais perdidos. Onde eu chegava, perguntava se tinham visto por ali um homem com estes e estes sinais, a mão esquerda de menos, e alto como um soldado da guarda real e uma barba toda e grisalha. Fui muito bem recebida por muita gente de muitas terras, mas em outras terras fui apedrejada e escarnecida. Quando finalmente o  encontrei foi no dia em que soube que o iria perder. Encontrei-o a meio de um auto de fé a ser condenado, queimado vivo. Só a sua vontade ficou comigo, para sempre.

Blimunda, agradeço-lhe imenso por ter estado aqui comigo a responder a estas perguntas e desejo-lhe tudo de bom, foi um prazer estar aqui consigo.

Obrigada eu, Teresa, uma coisa é certa, sei que sei, não sei como sei, mas mal começou a entrevista, eu vi que você é uma pessoa muito boa e também lhe desejo tudo de bom na vida.

 Teresa Lourenço, 12ºA

Imagem: Companhia de Teatro Éter - https://virtualeter.video/memorial-programa-divulgacao/

Sem comentários: