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25 novembro 2013

A importância da palavra


"O pintor debaixo do lava-loiças, Afonso Cruz (Caminho)
Existiu mesmo um pintor debaixo do lava-loiças, na casa dos avós do escritor e foi esse o ponto de partida para esta história ficcionada e deslumbrante. Quando comecei a ler, veio-me à ideia Gonçalo M. Tavares, pela escolha da localização da história, mas à medida que fui lendo, tornou-se incontornável a associação ao Principezinho de Saint-Exupery. É-lhe aliás feita referência no título Em 1940 um aviador que pousou em Lisboa haveria de escrever: o essencial não se vê e, de alguma maneira, a descrição que faz da cidade quando o protagonista chega a Lisboa é coincidente com a constante de textos deste autor.
 
Ao contrário do principezinho, o protagonista desta história está atado à terra e vive os momentos dramáticos da 1ª Guerra Mundial nas tricheiras e o início da 2ª Guerra Mundial, passando por Bratislava, EUA e Portugal.
As personagens, descritas com traços largos, prendem-nos à leitura: a deslumbrante Frantiska, que enuncia regras que mudam todos os dias, o coronel com flores na cabeça e que não gosta de armas, o mordomo que não entende metáforas, a sua viúva que todos os dias estende a sua roupa na cama e lhe põe um lugar na mesa....
 
As frases roubadas são intermináveis e por isso deixo aqui apenas algumas, a começar com uma que encontramos logo na introdução:
 
Enquanto a água se pode guardar em garrafas, as histórias não podem ser engarrafadas sem que se estraguem rapidamente.
O mundo inteiro puxa-nos para baixo, mas as mãos de quem gosta de nós atiram-nos para o alto. Sem se cansarem.
O amor, dizia Sors, é uma casa sem telhado, pois quando olhamos para cima vemos o céu.
Não há mal em temer a morte. Há mal é em temer a vida.
Frantiska tinha razão: quando se canta, as coisas voltam ao seu estado original.
O esforço para ser feliz é muito maior do que aquilo que desfrutamos. "
 
 
 
 
"O Pintor Debaixo do Lava-Loiças, novo romance de Afonso Cruz, tem como centro aquilo a que se pode chamar uma boa história: nascido nos últimos anos do século XIX, na quase ruína do império Austro-Húngaro, Jozef Sors cresce a descobrir o mundo a partir daquilo que desenha, tropeça constantemente na rigidez e no método que impõe à sua vida e acaba na Figueira da Foz, protegendo-se da perseguição aos judeus debaixo do lava-loiças de uma família que decide acolhê-lo e que permite que esse espaço exíguo, entre canos e algum bafio, se torne a sua casa. Um homem a viver debaixo de um lava-loiças tem potencial, como enredo, e mais potencial ganha quando percebemos que tudo isto se baseia em factos reais, que ocorreram com os avós do autor, mas convenhamos que nem os factos reais garantem boas narrativas, nem as boas narrativas dependem apenas do seu enredo.E lá voltamos ao início, agora com menos palavreado. Partindo de uma boa história, Afonso Cruz constrói um extraordinário romance sobre o modo como a linguagem, não necessariamente verbal, é o único modo viável para compreender o mundo. Podia falar-se do nervo, dos muitos nervos que esta história toca com elegância e eficácia, mas tudo isso nasce e morre com a aprendizagem de Sors sobre o que o rodeia. Se o seu pai era incapaz de compreender qualquer metáfora, ignorando a mecânica dos segundos sentidos, e se o seu amigo de infância, Wilhelm, vivia obcecado com as palavras que não foram concretizadas, procurando nos clássicos da literatura aquilo que lá não estava escrito, Sors nasceu com a consciência inquietante de que é preciso organizar o mundo na cabeça de cada um, e é isso que faz ao longo da vida (agora era um bom momento para falar do bildungsroman, o palavrão alemão para ‘romance de formação’, mas isso era quebrar a promessa de há umas linhas atrás…). Pode parecer banal, mas todos os dias constatamos que uma parte considerável da humanidade ainda não se deu conta de tão simples necessidade."

Sara Figueiredo Costa
Publicado na Time Out, nº201, Agosto 2011, disponível no blogue Cadeirão Voltaire, in  http://cadeiraovoltaire.wordpress.com/2011/08/10/afonso-cruz-o-pintor-debaixo-do-lava-loicas-caminho/
 
 
Afonso Cruz é escritor, ilustrador, realizador de animação e músico.

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