«Eu nunca fiz senão sonhar»
Eu nunca fiz senão sonhar. Tem sido esse, e esse apenas, o sentido da minha vida. Nunca tive outra preocupação verdadeira senão a minha vida interior. As maiores dores da minha vida esbatem-se-me quando, abrindo a janela para a rua do meu sonho, esqueço a vista no seu movimento. (...)A minha mania de criar um mundo falso acompanha-me ainda, e só na minha morte me abandonará. Não alinho hoje nas minhas gavetas carros de linhas e peões de xadrez – com um bispo ou um cavalo acaso sobressaindo – mas tenho pena de o não fazer... e alinho na minha imaginação, confortavelmente, como quem no inverno se aquece a uma lareira, figuras que habitam, e são constantes e vivas, na minha vida interior. Tenho um mundo de amigos dentro de mim, com vidas próprias, reais, definidas e imperfeitas.
Alguns passam dificuldades, outros têm uma vida boémia, pitoresca e humilde. Há outros que são caixeiros-viajantes (poder sonhar-me caixeiro-viajante foi sempre uma das minhas grandes ambições – irrealizável infelizmente!). Outros moram em aldeias e vilas lá para as fronteiras de um Portugal dentro de mim; vêm à cidade, onde por acaso os encontro e reconheço, abrindo-lhes os braços emotivamente... E quando sonho isto, passeando no meu quarto, falando alto, gesticulando... quando sonho isto, e me visiono encontrando-os, todo eu me alegro, me realizo, me pulo, brilham-me os olhos, abro os braços e tenho uma felicidade enorme, real, incomparável. (...)
Há também as paisagens e as vidas que não foram inteiramente interiores. Certos quadros, sem subido relevo artístico, certas oleogravuras que havia em paredes com que convivi muitas horas – passaram a realidade dentro de mim. Aqui a sensação era outra, mais pungente e triste. Ardia-me não poder estar ali, quer eles fossem reais ou não. Não ser eu, ao menos, uma figura a mais desenhada ao pé daquele bosque, ao luar que havia numa pequena gravura dum quarto onde dormi já não em pequeno! Não poder eu pensar que estava ali oculto, no bosque à beira do rio, por aquele luar eterno (embora mal desenhado), vendo o homem que passa num barco por baixo do debruçar-se de um salgueiro! Aqui o não poder sonhar inteiramente doía-me. As feições da minha saudade eram outras. Os gestos do meu desespero eram diferentes. A impossibilidade que me torturava era de outra ordem de angústia. Ah, não ter tudo isto um sentido em Deus, uma realização conforme o espírito de meus desejos, não sei onde, por um tempo vertical, consubstanciado1 com a direção das minhas saudades e dos meus devaneios! Não haver, pelo menos só para mim, um paraíso feito disto!»
Bernardo Soares, Livro do Desassossego: composto por Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa, (ed. Richard Zenith), 7.ª ed., Lisboa, Assírio & Alvim, 2014, pp. 110-112
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