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13 março 2018

Memórias (MªFilomena Mónica)

Há muito, muito tempo, o Universo apenas era habitado por mim e pela minha mãe. Recordo, na penumbra, outras mulheres, a avó Maria, a Ti-Mi e a Ti-Lú. Nenhuma tinha marido ou, se os tinham, guardavam-nos longe. Lembro-me, finalmente, de um senhor caminhando por um longo corredor. Eu só via o meu pai, pois dele se tratava, à hora do jantar. Não que comesse à sua mesa, mas era esse o momento em que, antes de ir para a cama, era autorizada a dar-lhe um beijinho. O meu pai era de poucas falas, facto que inicialmente me não afectou. Só durante a adolescência, quando as «conversas» com a minha mãe se tornaram insuportáveis, o seu silêncio me perturbou, mas acabei por entender que ele não desejava prestar-se ao papel de minha tábua de salvação. A sua fraqueza congénita, ou, em versão positiva, a sua paixão pela minha mãe, haviam-no tornado um dependente. Tentei convencer-me de que esta atitude derivava do facto de ter ele nascido numa família onde se pensava que, a existirem, os afectos deveriam ser escondidos, mas isso jamais minimizou a minha raiva.
Maria Filomena Mónica, Bilhete de Identidade, Memórias 1943-1976, Alêtheia Editores, Lisboa, 2005.

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