Há muito,
muito tempo, o Universo apenas era habitado por mim e pela minha mãe. Recordo,
na penumbra, outras mulheres, a avó Maria, a Ti-Mi e a Ti-Lú. Nenhuma tinha
marido ou, se os tinham, guardavam-nos longe. Lembro-me, finalmente, de um
senhor caminhando por um longo corredor. Eu só via o meu pai, pois dele se
tratava, à hora do jantar. Não que comesse à sua mesa, mas era esse o momento
em que, antes de ir para a cama, era autorizada a dar-lhe um beijinho. O meu
pai era de poucas falas, facto que inicialmente me não afectou. Só durante a
adolescência, quando as «conversas» com a minha mãe se tornaram insuportáveis,
o seu silêncio me perturbou, mas acabei por entender que ele não desejava
prestar-se ao papel de minha tábua de salvação. A sua fraqueza congénita, ou,
em versão positiva, a sua paixão pela minha mãe, haviam-no tornado um
dependente. Tentei convencer-me de que esta atitude derivava do facto de ter
ele nascido numa família onde se pensava que, a existirem, os afectos deveriam
ser escondidos, mas isso jamais minimizou a minha raiva.
Maria
Filomena Mónica, Bilhete de Identidade,
Memórias 1943-1976, Alêtheia Editores, Lisboa, 2005.
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