"Até
a adolescência, a memória tem mais interesse no futuro que no passado,
e por isso minhas lembranças da cidadezinha ainda não estavam idealizadas pela
nostalgia. Eu me lembrava de como ela era: um bom lugar para se viver, onde
todo mundo conhecia todo mundo, na beira de um rio de águas diáfanas que se
precipitavam num leito de pedras polidas, brancas e enormes como ovos
pré-históricos.
Ao entardecer, sobretudo
em dezembro, quando passavam as chuvas e o ar tornava-se de diamante, a Serra
Nevada de Santa Marta parecia aproximar-se com seus picos brancos até as
plantações de banana, lá na margem oposta. Dali dava para ver os índios
aruhacos correndo feito formiguinhas enfileiradas pelos parapeitos da serra
[…].
Nós, meninos, tínhamos
então a ilusão de fazer bolas com as neves perpétuas e brincar de guerra nas
ruas abrasadoras. Pois o calor era tão inverosímil, sobretudo durante a sesta,
que os adultos se queixavam dele como se fosse uma surpresa a cada dia. Desde o
meu nascimento ouvi repetir, sem descanso, que as vias do trem de ferro e os
acampamentos da United Fruit Company foram construídos de noite, porque de dia
era impossível pegar nas ferramentas aquecidas pelo sol.
A única maneira de chegar de Barranquilla a Aracataca
era numa destrambelhada lancha a motor, por um canal cavado à mão de escravo
durante a colônia, e depois através de um vasto pantanal de águas turvas e
desoladas, até a misteriosa cidade de Ciénaga, que também quer dizer lamaçal.
Ali pegava-se o trem que em suas origens tinha sido o melhor do país, e nele se
fazia o trajeto final pelas imensas plantações de banana, com muitas paradas
ociosas em aldeolas poeirentas e ardentes, e em estações solitárias. Foi esse o
caminho que minha mãe e eu fizemos às sete da noite do sábado 18 de fevereiro
de 1950 — véspera de carnaval — debaixo de um aguaceiro diluviano e temporão e
com trinta e dois pesos em dinheiro que mal e mal seriam suficientes para
regressar se não vendêssemos a casa nas condições previstas. Os ventos alísios
estavam tão bravos naquela noite que no porto fluvial tive muito trabalho em
convencer minha mãe a embarcar. Não lhe faltava razão. [...]
Como à última hora não encontramos nenhum camarote
livre, nem tínhamos redes, minha mãe e eu tomamos de assalto duas cadeiras de
ferro do corredor central e nelas nos dispusemos a passar a noite.
Tal como ela temia, a tormenta espancou a temerária
embarcação enquanto atravessávamos o rio Magdalena, que a tão curta distância
de seu estuário tem um temperamento oceânico. […] Minha mãe agarrou-se ao seu
rosário de três voltas como se fosse um cabresto capaz de desencalhar um trator
ou segurar um avião no ar, e seguindo seu costume não pediu nada para ela, mas
prosperidade e vida longa para seus onze órfãos. Sua súplica deve ter chegado
no destino certo, porque a chuva amansou assim que entramos no canal e a brisa
leve soprou para espantar os mosquitos. Minha mãe guardou então o rosário e
durante um longo tempo observou em silêncio o fragor da vida que transcorria à
nossa volta.”
Gabriel García Marquez. Viver para contar*. Rio
de Janeiro: Record, 2003.
*Em Portugal, esta autobiografia designa-se Viver para contá-la e está disponível na nossa Biblioteca.
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