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06 março 2018

Memórias (Pablo Neruda)


    Vou contar o que aconteceu na Vega Central, o mercado maior e mais popular de Santiago do Chile.
Alguém veio um dia buscar-me de automóvel, fazendo-me entrar no veículo sem saber exatamente para onde e ao que ia. Levava no bolso um exemplar do livro Espana en el corazón. Dentro do carro explicaram-me que estava convidado para fazer uma conferência no Sindicato dos Carregadores da Vega.
Quando entrei naquela sala desordenada, senti o frio do Noturno de José Asunción Silva, não só pelo adiantado Inverno como pelo ambiente, que me deixava atónito. Sentados em caixotes ou em improvisados bancos de madeira, uns cinquenta homens aguardavam-me. Alguns tinham à cinta um saco amarrado em jeito de avental, outros cobriam-se com velhas camisolas remendadas e outros desafiavam o frio mês de julho chileno com o torso nu. Eu sentei-me por detrás da mesinha que me separava daquele estranho público. Todos me fitavam com os olhos carbónicos e estáticos do povo do meu país. […]
Que fazer com este auditório? De que poderia falar-lhe? Que coisas da minha vida seriam capazes de lhes interessar? Sem atinar numa decisão e escondendo o desejo de sair a correr, agarrei no livro que levava comigo e disse-lhes:
- Estive em Espanha há pouco tempo. Havia lá muita luta e muitos tiros. Ouçam o que escrevi sobre aquilo.
Devo notar que o livro Espana en el corazón nunca me pareceu de fácil compreensão. Revela um esforço de clareza, mas está embebido do torvelinho daquelas grandes, múltiplas dores.
O facto é que pensei ler umas tantas estrofes, juntar umas quantas palavras, e despedir-me. Mas as coisas não aconteceram assim. Ao ler poema após poema, ao sentir o silêncio, como de água profunda, em que as minhas palavras caíam, ao ver como aqueles olhos e sobrancelhas escuras seguiam intensamente a minha poesia, compreendi que o livro chegava aos destinatários. Continuei a ler mais e mais, comovido eu próprio pelo som da minha poesia, agitado pela magnética relação entre os meus versos e aquelas almas abandonadas.
A leitura durou mais de uma hora. Quando me preparava para sair, um daqueles indivíduos levantou-se. Era dos que tinham o saco atado em torno da cintura.
Quero agradecer-lhe em nome de todos - disse em voz alta. - Quero dizer-lhe, além disso, que nada até hoje nos impressionou tanto.

Ao proferir estas palavras, estalou nele um soluço. Outros mais choraram também. Saí para a rua por entre olhares húmidos e rudes apertos de mão.
Poderá um poeta continuar a ser o mesmo depois de passar por estas provas de frio e fogo?”
Pablo Neruda, Confesso Que Vivi

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