Total visualizações

06 março 2018

Diário (Miguel Torga)

Domínio|LEITURA
Género| Diário



Torga, aos 21 anos, em Coimbra

“Por que razão profunda eu escrevo e publico […]? A ideia de um diário íntimo, de tripas na mão, é uma ideia romântica. Só uma mentalidade byroniana [1] pode conceber o absurdo de se julgar polo do mundo, fulcro de todos os conflitos que interessam o homem. Daí que nas próprias dores cuide resumir todas as dores possíveis, e descreva uma insónia sua como a catástrofe máxima da noite que decorreu. […]

No meu Diário creio que há muita literatura, também. Certo que nem sempre escrevi que sou intransigente, duro, obcecado, capaz de uma lógica que toca a desumanidade. Sei que nem sempre admiti que estava irritado com este camarada e com aquele amigo, e que há em mim uma manha de cavador que se sobrepõe ao desbragamento da confissão. Preferi às vezes pôr um poema onde devia estar um insulto, e em certas ocasiões acreditei mais no meu instinto sem provas do que na ninha razão com argumentos. Enchi com frequência uma página de lamúrias, quando na verdade estava cheio de força e de alegria.

Mas quem é que não conhece estas minhas misérias à saciedade, e sabe do pouco de artistas que ignora a falta de sintonização do estado recetivo com o estado de criação? De resto, um diário não é necessariamente um perpétuo mea culpa. Pode ser um simples memento, um exercício espiritual, um caderno de apontamentos, tudo o que se queira. Que nele haja sempre um derrame de pecados e maceração, parece-me um absurdo. Pela minha parte, não sou delator, nem meu, nem dos outros. Não tenho nada a esconder do leitor, a quem nunca vendo gato por lebre, mas quero ter mão em mim, evitando-lhe o espetáculo de uma exibição confrangedora. Há recantos do ser e da vida que precisam de silêncio.[…]


Da minha pena de artista quero que saia apenas aquela intimidade que me parece ser suficiente para matar a justa curiosidade do leitor devotado, e me deixe ao abrigo de todas as bisbilhotices doentias.”
Miguel Torga, Diário III
(Coimbra, 17 de junho de 1946)


MIGUEL TORGA, uma vida muito especial (saber mais) - Aos 10 anos vai como criado, para o Porto, e aos 13 anos parte sozinho para o Brasil, enviado pelos pais para trabalhar na fazenda de um parente...aos 21 anos inicia o Curso de Medicina, em Coimbra.
 

[1] Referente a Lord Byron (1788-1824), poeta inglês e uma das maiores figuras do Romantismo.





 Miguel Torga está à tua espera na BIBLIOTECA DA ESHN!
BE no Twitter 

Sem comentários: