Género| Diário
Torga, aos 21 anos, em Coimbra
“Por que razão profunda eu escrevo e
publico […]? A ideia de um diário
íntimo, de tripas na mão, é uma ideia romântica. Só uma
mentalidade byroniana [1] pode conceber o absurdo de se julgar polo
do mundo, fulcro de todos os conflitos que interessam o homem. Daí que nas
próprias dores cuide resumir todas as dores possíveis, e descreva uma insónia
sua como a catástrofe máxima da noite que decorreu. […]
No meu Diário creio que há muita
literatura, também. Certo que nem sempre escrevi que sou intransigente, duro,
obcecado, capaz de uma lógica que toca a desumanidade. Sei que nem sempre
admiti que estava irritado com este camarada e com aquele amigo, e que há em
mim uma manha de cavador que se sobrepõe ao desbragamento da confissão. Preferi
às vezes pôr um poema onde devia estar um insulto, e em certas ocasiões
acreditei mais no meu instinto sem provas do que na ninha razão com argumentos.
Enchi com frequência uma página de lamúrias, quando na verdade estava cheio de
força e de alegria.
Mas quem é que não conhece estas
minhas misérias à saciedade, e sabe do pouco de artistas que ignora a falta de
sintonização do estado recetivo com o estado de criação? De resto, um diário
não é necessariamente um perpétuo mea culpa. Pode ser um simples memento,
um exercício espiritual, um caderno de apontamentos, tudo o que se queira. Que
nele haja sempre um derrame de pecados e maceração, parece-me um absurdo. Pela
minha parte, não sou delator, nem meu, nem dos outros. Não tenho nada a
esconder do leitor, a quem nunca vendo gato por lebre, mas quero ter mão em
mim, evitando-lhe o espetáculo de uma exibição confrangedora. Há recantos do ser e da vida que precisam de
silêncio.[…]
Da minha pena de artista quero que
saia apenas aquela intimidade que me parece ser suficiente para matar a justa
curiosidade do leitor devotado, e me deixe ao abrigo de todas as bisbilhotices
doentias.”
Miguel Torga, Diário III
(Coimbra, 17 de junho de 1946)
MIGUEL
TORGA, uma vida muito especial (saber mais) - Aos 10 anos vai como
criado, para o Porto, e aos 13 anos parte sozinho para o Brasil, enviado pelos
pais para trabalhar na fazenda de um parente...aos 21 anos inicia o Curso de
Medicina, em Coimbra.
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