Em "Tabacaria" confluem grande parte dos tópicos da heteronímia : o nada e o absurdo de tudo, o sonho e a realidade, o eu fragmentado ou plural, a consciência e a inconsciência, a metafísica e a sua ausência, o sentido e a falta de sentido, a passagem do tempo, a felicidade e a náusea…
O pensador Eduardo Lourenço disse deste poema: «Todo o Álvaro de Campos nele se concentra» e o crítico literário Carlos Filipe Moisés considera que «Tabacaria" é «uma síntese da problemática pessoana em geral».
Clara Ferreira Alves (que foi diretora da Casa Fernando Pessoa e da Revista TABACARIA) escreveu sobre F. Pessoa e o poema "Tabacaria": «Ele não foi um génio em Portugal. Foi o génio português no mundo. São coisas diferentes. E para ser este génio bastava-lhe ter escrito a Tabacaria (1929). E mais nada.»
Fernando Pessoa; pintura de Júlio Pomar
TABACARIA
Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a pôr humidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.
Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.
Estou hoje perplexo como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.
Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa,
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei-de pensar?
Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso ser tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
[...]
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