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18 novembro 2023

Fernando Pessoa - Álvaro de Campos, TABACARIA


Na continuação das leituras e trabalhos de aula, fica o início de TABACARIA (Aqui - poema completo) 

 É um poema Publicado na revista Presença (n.º  39, Julho de 1933), datado de 15 de Janeiro de 1928 (ver imagem, abaixo).

 Em "Tabacaria" confluem grande parte dos tópicos da heteronímia : o nada e o absurdo de tudo, o sonho e a realidade,  o eu fragmentado ou plural, a consciência e a inconsciência, a metafísica e a sua ausência, o sentido e a falta de sentido, a passagem do tempo, a felicidade e a náusea…

 O pensador Eduardo Lourenço disse deste poema: «Todo o Álvaro de Campos nele se concentra» e o crítico literário  Carlos Filipe Moisés considera  que «Tabacaria" é «uma síntese da problemática pessoana em geral».

 Clara Ferreira Alves (que foi diretora da Casa Fernando Pessoa e da Revista TABACARIA) escreveu sobre F. Pessoa e o poema "Tabacaria": «Ele não foi um génio em Portugal. Foi o génio   português no mundo. São coisas diferentes. E para ser este génio bastava-lhe ter escrito a Tabacaria (1929). E mais nada.»

  Fernando Pessoa; pintura de Júlio Pomar

 

TABACARIA

Não sou nada. 

Nunca serei nada. 

Não posso querer ser nada.

À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

 

Janelas do meu quarto,

Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é

(E se soubessem quem é, o que saberiam?),

Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,

Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,

Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,

Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,

Com a morte a pôr humidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,

Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.

 

Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.

Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,

E não tivesse mais irmandade com as coisas

Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua

A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada

De dentro da minha cabeça,

E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

 

Estou hoje perplexo como quem pensou e achou e esqueceu.

Estou hoje dividido entre a lealdade que devo

À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,

E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

 

Falhei em tudo.

Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.

A aprendizagem que me deram,

Desci dela pela janela das traseiras da casa,

Fui até ao campo com grandes propósitos.

Mas lá encontrei só ervas e árvores,

E quando havia gente era igual à outra.

Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei-de pensar?

 

Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?

Ser o que penso? Mas penso ser tanta coisa!

E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!

 [...]

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