Total visualizações

13 abril 2013

Atualizar a reflexão de um autor - como fazer?


   Como creio que MEMORIAL DO CONVENTO começa a estar já apreendido no seu significado, simbologia e alcance, creio que seria interessante  pensarem em formas de atualizar a reflexão do autor.

Assim, se vivesse agora, que aspetos da vida histórica, social e humana caberiam na sua reflexão?

Se o narrador de MEMORIAL viesse aqui e agora - «neste ano da graça de 2013» - que página de texto escreveria? quem seria objeto da sua narrativa? e a língua afiada, pronta a comentar o que visse, que diria?


Para se inspirararem, deixo um interessantíssimo texto com um objetivo idêntico, mas escrito a propósito de OS MAIAS, publicação realizada - obviamente - com a autorização do autor,  um espírito crítico de 2013, inspirado pelo Eça  




Um crítico do seu tempo


O jantar tinha sido marcado para as nove menos um quarto no “Fuzeta”, um restaurante no início da Rua D. Alfredo com espaço para algumas sessenta almas. Tratava-se de um espaço de alegre ambiente, boa comida, bebida e preço acessível, o que o tornava extremamente requisitado para este tipo de eventos: jantares de anos de adolescentes. No entanto, o factor mais importante era, na realidade, a sua considerável distância do centro, o que afastava a hipótese de um encontro indesejado com algum conhecido.

    Apesar de ser íntimo do aniversariante, Tomás, um rapaz de 17 anos, baixa estatura, largos ombros, com cabelos de raiz escura mas clareados pelo sol, pele morena, lábios carnudos e olhos claros e amigáveis, só saíra de casa às nove e dez. Não se atrasara por ter perdido a noção do tempo ou ter estado nalguma actividade que lhe impedira de se despachar mais cedo. Tinha sido um atraso propositado e a complexa explicação estava a ser-lhe dada pelo seu amigo Ernesto:
    - És tão simples que dói. - Tomás era de facto, um rapaz com um sentido prático extremamente acentuado que nunca percebera a constante necessidade de se complicar o que era simples – Vou-te explicar como se fosses muito burro. Ninguém vai lá estar à hora marcada, as pessoas chegam sempre atrasadas e nós certamente que não queremos ser mais atrasados que elas, chegando a horas.
    - Mas explica-me, porque é que hei-de ficar em casa a queimar tempo, para chegar atrasado?! Se os outros não chegam a horas, problema deles, percam menos tempo a escolher as meias que melhor combinam com as cuecas que vão levar.
    - Achas mesmo que o problema desta gente é falta de tempo? A roupa para hoje já está escolhida há uma semana e, para além dos jogos de futebol, não devem perder tempo com mais nada: não se estuda, não se lêem livros, não se faz desporto, não nada.
Continuando, chega-se atrasado porque é “chique”, aquilo a que os ingleses chamam to be fashionably late. Ninguém que se preze é a primeira pessoa a chegar a uma festa.
    - Ahhhh, já percebi, chego atrasado para parecer uma pessoa ocupada enquanto na verdade estive em casa a empatar. Como é que demorei tanto tempo a compreender toda a lógica inerente a este processo?!
    Ernesto, sorriu.

    Antes de irem para o “Fuzeta”, Ernesto queria comprar um maço de Marlboro por isso pararam no “Café do Aires” , uma familiar taberna onde os reformados e desempregados da zona se juntavam para as suas importantíssimas discussões sobre futebol, carros e mulheres, estranhamente, encontrava-se sempre cheio. Tomás considerava pertencer à minoria dos adolescentes que não fumavam, e, dado que só excepcionalmente lhe era apresentada uma boa desculpa para tal, achava que o facto de fumarem um cigarrinho de vez em quando, só mostrava o quão influenciada esta juventude se mostrava. Fumavam porque era maturo, fumavam porque dava estilo, fumavam por fumar, enfim, fumavam por falta de carácter.
    Quantas e quantas tentativas de persuadir Ernesto a parar, apenas resultaram no amargo sabor do insucesso para Tomás. Eventualmente, Tomás desistira. Sempre que o via a fumar, lembrava-se da, provavelmente, maior discussão que tivera com Ernesto e que desencadeara no que parecera uma infinita série de revelações e desabafos.
  

    Tomás sempre soubera que os pais de Ernesto eram ausentes, em miúdos, após a escola, Ernesto enfiava-se em sua casa e brincavam até à hora de jantar. Ao início, os seus pais estranhavam o facto de uma criança passar o dia fora de casa sem que ninguém perguntasse por ela mas, apercebendo-se da falta de presença daqueles pais, se é que se podiam chamar de pais, a mãe de Tomás, praticamente adoptara aquele miúdo que, daí em diante, apenas ia a casa a dormir, quando não o fazia em casa de Tomás. Cresceram como irmãos, quem não os conhecesse não o negaria não fosse Ernesto ser incrivelmente alto, loiro, branco como o cal e os olhos de um azul que faziam lembrar o mar de uma praia paradisíaca, e, no entanto, a vivacidade e boa disposição de Ernesto ocultavam, mesmo para Tomás, todo o drama que decorria no seu lar.
    Não se tratava de um caso de violência doméstica ou de uma pai bêbado que, de madrugada, acordava a família enquanto barafustava para uma porta que se recusava a abrir… Não, Ernesto pertencia a uma família de bom nome, seus pais eram inteligentíssimos, de boas maneiras, profissionais extraordinários com os cargos mais destacados nas respectivas empresas. 
    O único problema era que os seus pais ignoravam-no, pura e simplesmente. Sentia-se a mais naquela família, sentia que aquilo não era uma família, sentia que aqueles que o conceberam não nutriam qualquer tipo de afectos por ele, e aí estava a razão para Ernesto fumar. Não era extraordinário, para Ernesto, não falar com os pais durante uma semana. Até o preferia assim, era uma maneira de não ter de ouvir críticas sobre tudo e mais alguma coisa e, quando não os via, sentia-se aliviado, pois entravam constantemente em conflito o que o enervava seriamente.
    Eventualmente habituara-se aquela maneira de viver, nunca conhecera outra, mas, cada vez que se chateava com os pais, ficava stressado e fumar era o que o ajudava a acalmar-se. Para Tomás continuava a ser uma estupidez.

    Absorto nos seus pensamentos, nem dera conta que já se encontravam à porta do “Fuzeta”. Não era invulgarmente bonito, mas a forma como estava mobilado tornava-o invulgarmente confortável. A divisão que mais agradava Tomás era um pequeno hall com dois ou três cadeirões de pele, gastos pelo uso, dispostos em círculo à volta de uma antiga mesa de madeira avermelhada com reduzidas dimensões. O chão de tijolo era tenuemente iluminado por três candeeiros nas paredes brancas decoradas com uma só pintura que retractava as feições severas do fundador do restaurante.


   Quando os pratos bifinhos com cogumelos e os bitoques foram postos na longa mesa , já há muito que jarros de sangria e cerveja tinham sido esvaziados para os copos e, uma vez nos copos, pareciam evaporar e isso era notório no ambiente que imperava. O próprio Tomás já bebera um pouco, contudo, encontrava-se suficientemente sóbrio para notar todos aqueles meninos de boas famílias, supostamente, bem educados não eram capazes insistir que as meninas fossem servidas primeiro, ou de conter algumas palavras menos agradáveis nas suas conversinhas.
    Cavalheirismo, uma virtude em decadência… Mas enfim, que podia ele fazer? Acendeu um cigarro que o Ernesto lhe dera e, visto que a comida estava a esfriar, decidira comer. A rapariga que se sentara a seu lado olhava para a sua frente onde se encontrava um prato vazio…





      Bernardo Maria

                                                                                                                

2 comentários:

Anónimo disse...

Parabéns ao Bernardo (é aluno?)

É preciso ter espírito crítico.

Muitos julgam que na época do Eça é que havia matéria para crítica social deste género. Mas não é verdade. E é preciso ter os olhos bem abertos, pois como se percebe há muita hipocrisia social.



Noémia Santos disse...

Desculpem

Nunca chegara a responder: sim é um aluno do 11º ano, de quem sou amiga. Achei que serviria como uma boa inspiração.