Em resposta a dúvidas hoje colocadas sobre A DAMA NEGRA..., deixo alguns elementos a reter.
Ø
A sobrinha - Toda a
narrativa é espécie de confissão à sobrinha, Lourença, que se assume como
narratário, um género de leitor/ouvinte em primeira mão
Ø A narrativa vai sendo sempre entrecortada com a referência ao
narratário – Lourença – com expressões como Não me olhes assim, Lourença ou
Perguntas bem, Lourença... Lourença,
pressinto que neste momento estás empenhada em saber…
A autora do livro sabe – a partir
do testamento real – da existência histórica de uma sobrinha, citada como
herdeira. No final, Simoa
diz: «Contra a vontade da família do teu pai, fizeste questão de vir ao funeral
do teu tio e de me agradecer pessoalmente o sustento da tua casa. (…) o teu sacrifício
acabou por enriquecer os meus dias» Criou-se entre nós uma daquelas relações que
se fortalecem por antagonismo» (de idade e de princípios;
ao longo da narrativa percebe-se que a jovem é conservadora, embora boa pessoa,
alinha nos pensamentos/atitudes da época - Ex Abanas de novo a cabeça, Lourença, e bem vejo que o fazes com
especial desdém. É por tomares
conhecimento de que sou bastarda? ou Como é que tomei conhecimento desta intimidade? É isso
que cuidas de saber, Lourença? Só te respondo se prometeres não te
escandalizar. Não quero que fujas a correr para ires beijar os pés de uma das
figuras de Cristo na igreja mais próxima, em penitência pelas graves sevícias a
que por minha causa submetes os ouvidos.)
A Situação:
Sentindo a morte aproximar-se, Simoa
deseja acertar contas com as suas memórias invulgares e partilhá-las com a
sobrinha (estratégia para a autora contar a história). Por isso, no seu leito,
pede que Lourença permaneça ali a noite inteira para lhe contar tudo. Lourença
vai sendo interpelada; a dada altura adormece, mas Simoa continua.
O Testamento
No final da longa narrativa, em que
Lourença só manifesta a sua presença através da intermediação da narradora - Não
me olhes assim, Lourença etc, quando
Lourença acorda percebe que Simoa está moribunda, manda chamar o frade e os
notários para se encarregarem da encomendação da alma e dos bens,
respetivamente. Assim:
Aproxima-se a hora da janta. Pede a Maria das Chagas que te traga comida ao quarto. Suplico-te,
minha doce sobrinha, hoje não te vás embora para a tua casa. Gostaria que
permanecesses comigo a noite inteira. Traz aquela cadeira para junto da
cama e senta-te. Providencia também uma manta porque as noites ainda estão
frias. Quero contar-te
tudo antes da chegada do fim das coisas. A urgência deste
tempo que se esgota arrasta-me para um excesso de dúvidas sobre o
que fiz da minha vida. (…)/. Já não disponho de muito tempo. Estou ciente de que em cada batida do
meu coração há uma aproximação à morte.
(…) Julgava-me preparada para enfrentar a gadanha da morte,
mas na verdade mentia a mim mesma, ainda que com mentiras exactas à sua
maneira. Há anos que me esforço por coordenar os pensamentos com as fraquezas de uma idade avançada. Tento
infundir no meu espírito uma certa anuência à inevitabilidade da minha partida. Mas não me conformo! Fui
acautelando os preparativos para a
morte, organizei tudo menos a minha própria vontade.
(…)
Não me olhes assim, Lourença,
nem fales comigo nesse tom tão baixo. Ainda
não estou morta... Nasci preta, mas as vozes do povo de Lisboa asseguram
que a minha alma de tão pura só poderá ser branca. (…)
O tempo detém-se nestas imagens
que acompanham a minha infância. Crescem
as incoerências da memória e as personagens misturam-se, mas lembro-me bem
daquela tarde(…)
Em todo o caso, todas estas
recordações se revelam incertas, talvez falsas nos pormenores, mas
verdadeiras no conjunto.
Sem comentários:
Enviar um comentário