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04 janeiro 2013

Fernando Pessoa por ele próprio (ou quase...)

[dact] [1930?] 

Aspectos [Prefácio para a edição projectada das suas obras]

A obra complexa, cujo primeiro volume é este, é de substância dramática, embora de forma vária – aqui de trechos em prosa, em outros livros de poemas ou de filosofias.

É, não sei se um privilégio se uma doença, a constituição mental que a produz. O certo, porém, é que o autor destas linhas – não sei bem se o autor destes livros – nunca teve uma só personalidade, nem pensou nunca, nem sentiu, senão dramàticamente, isto é, numa pessoa, ou personalidade, suposta, que mais pròpriamente do que ele próprio pudesse ter esses sentimentos.

Há autores que escrevem dramas e novelas; e nesses dramas e nessas novelas atribuem sentimentos e ideias às figuras, que as povoam, que muitas vezes se indignam que sejam tomados por sentimentos seus, ou ideias suas. Aqui a substância é a mesma, embora a forma seja diversa.

A cada personalidade mais demorada, que o autor destes livros conseguiu viver dentro de si, ele deu uma índole expressiva, e fez dessa personalidade um autor, com um livro, ou livros, com as ideias, as emoções, e a arte dos quais, ele, o autor real (ou porventura aparente, porque não sabemos o que seja a realidade), nada tem, salvo o ter sido, no escrevê-las, o médium de figuras que ele próprio criou.

Nem esta obra, nem as que se lhe seguirão têm nada que ver com quem as escreve. Ele nem concorda com o que nelas vai escrito, nem discorda. Como se lhe fosse ditado, escreve; e, como se lhe fosse ditado por quem fosse amigo, e portanto com razão lhe pedisse para que escrevesse o que ditava, acha interessante – porventura só por amizade – o que, ditado, vai escrevendo.

O autor humano destes livros não conhece em si próprio personalidade nenhuma. Quando acaso sente uma personalidade emergir dentro de si, cedo vê que é um ente diferente do que ele é, embora parecido; filho mental, talvez, e com qualidades herdadas, mas as diferenças de ser outrem.

(...)
Afirmar que estes homens todos diferentes, todos bem definidos, que lhe passaram pela alma incorporadamente, não existem - não pode fazê-lo o autor destes livros; porque não sabe o que é existir, nem qual Hamlet ou Shakespeare, é que é mais real, ou real na verdade.



Excertos de Páginas Íntimas e Auto Interpretação

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