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26 abril 2018

Poetas contemporâneos - leituras (Eugénio de A. e Ruy Belo)

 Ruy Belo (1933-1978)
Nascido em Rio Maior, foi um poeta e ensaísta português. Estudou Direito em Coimbra e em Lisboa, tendo ido para Roma logo de seguida, onde tirou um doutoramento em Direito Canónico. Foi diretor literário da Editorial Aster, chefe de redação da revista Rumo e exerceu um cargo de diretor-adjunto no Ministério da Educação Nacional. Escreveu sobre a religião e a metafísica, sob a forma de interrogações acerca da existência, como em Boca Bilingue (1966), Homem de Palavra (s) (1969) e País possível (1973). Nos seus poemas conjugam-se domínios das técnicas poéticas tradicionais. A sua obra Obra poética de Ruy Belo (1981) é considerada uma das obras cimeiras da poesia portuguesa contemporânea.




Soneto Superdesenvolvido
É tão suave ter bons sentimentos,
consola tanto a alma de quem os tem,
que as boas acções são inesquecíveis momentos
e é um prazer fazer o bem.


Por isso, quando no Verão se chega a uma esplanada
sabe melhor dar esmola que beber a laranjada,
consola mais viver entre os muito pobres
que conviver com gente a quem não falta nada.


E ao fim de tantos anos a dar do que é seu,
independentemente da maneira como se alcançou,
ainda por cima se tem lugar garantido no céu,
gozo acrescido ao muito que se gozou.


Teria este ... se não tivesse outro sentido,
ser natural de um país subdesenvolvido.
                                                                       Ruy Belo

Constituído por 3 quadras e um dístico, este poema insere-se na obra intitulada  País Possível (1973) que tem como tema principal a vida num Portugal opressivo, anterior à Revolução de Abril. É abordado como um país real onde são destacados os seus princípios e figuras principais, convidando a uma reflexão sobre o Portugal futuro, a uma outra alternativa de país.
Neste poema, o autor ironiza a atitude de caridade por parte das classes sociais mais altas e de resignação por parte dos pobres pois não há lugar nem voz para estes: servem apenas como um meio pela qual os mais ricos podem realizar boas ações e garantirem a sua satisfação pessoal. Ou seja, através do humor, são desvendadas as verdadeiras intenções da caridade das pessoas: para além de garantir consolo pessoal, abre também caminho para a aquisição de benefícios numa outra vida pois “independentemente da maneira como se alcançou,/ ainda por cima se tem lugar garantido no céu,/ gozo acrescido ao muito que se gozou.” Afinal de contas, tudo isto é “natural de um país subdesenvolvido”.


Eugénio de Andrade (1923-2005)
José Fontinhas, nascido no Fundão, frequentou o Liceu Passos Manuel, em Lisboa, tendo escrito os seus primeiros poemas com apenas 13 anos de idade e publicado o seu primeiro livro em 1940, Narciso. Completou o seu serviço militar em Coimbra e, posteriormente, regressou a Lisboa e tornou-se Inspetor Administrativo do Ministério da Saúde. Travou diversas amizades com personalidades portuguesas e estrangeiras como Miguel Torga, Sophia de Mello Breyner Andersen e Marguerite Yourcenar. Ganhou inúmeros prémios nacionais e internacionais, entre eles o Prémio Camões, em 2001. Algumas das suas obras são As mãos e os frutos (1948), Os amantes sem dinheiro (1950), Branco no branco (1984), Ofício de paciência (1994) e O sal da língua (1995). 
No dizer do poeta e crítico Pedro Mexia, é "Um poeta que entendeu a poesia como um instrumento da alegria."


Poema à mãe

 No mais fundo de ti,
eu sei que traí, mãe

Tudo porque já não sou
o retrato adormecido
no fundo dos teus olhos.

Tudo porque tu ignoras
que há leitos onde o frio não se demora
e noites rumorosas de águas matinais.

Por isso, às vezes, as palavras que te digo
são duras, mãe,
e o nosso amor é infeliz.

Tudo porque perdi as rosas brancas
que apertava junto ao coração
no retrato da moldura.

Se soubesses como ainda amo as rosas,
talvez não enchesses as horas de pesadelos.

Mas tu esqueceste muita coisa;
esqueceste que as minhas pernas cresceram,
que todo o meu corpo cresceu,
e até o meu coração
ficou enorme, mãe!

Olha — queres ouvir-me? —
às vezes ainda sou o menino
que adormeceu nos teus olhos;

ainda aperto contra o coração
rosas tão brancas
como as que tens na moldura;

ainda oiço a tua voz:
          Era uma vez uma princesa
          no meio de um laranjal...


Mas — tu sabes — a noite é enorme,
e todo o meu corpo cresceu.
Eu saí da moldura,
dei às aves os meus olhos a beber,

Não me esqueci de nada, mãe.
Guardo a tua voz dentro de mim.
E deixo-te as rosas.

Boa noite. Eu vou com as aves.

Eugénio de Andrade, in "Os Amantes Sem Dinheiro"

Leitura 1. (Luana e Márcia) 
Este poema, inserido na obra Os amantes sem dinheiro (1950), aborda o tema da relação entre mãe e filho, numa idade já mais avançada deste, em que já não é a criança a que a mãe estava habituada e, agora, restam apenas as recordações daquilo por que passaram, guardadas na memória de cada um. São-nos apresentadas perspetivas do presente e do passado: no passado, era uma criança feliz, onde o amor que recebia era exclusivo; ao contrário do presente, em que  é um jovem adulto com necessidade de um outro amor.
O autor convida-nos a uma reflexão acerca da nossa evolução, revelando um sentimento de culpa apontado às causas do desencontro afetivo, que era inevitáveis, acabando o poema com uma despedida da figura materna, dizendo “Boa noite. Eu vou com as aves.” que representa a separação física e psicológica da sua infância. 

Leitura 2. (Nuno e Tiago)
Há uma relação entre mãe e filho que foi traída pelo crescimento do último bem como pela sua vontade de descobrir o mundo para além dos seus horizontes. A mãe quer que este não se vá; porém, o filho, que pode ser interpretado como o próprio Eugénio de Andrade devido à semelhança entre poeta e sujeito poético, decide ir-se embora com as memórias do passado e o amor à sua progenitora.


Alexandre O’Neill (1924-1986)
Nascido em Lisboa, foi um poeta do movimento surrealista português, tendo publicado os seus primeiros poemas com apenas 17 anos mas só foi reconhecido como poeta em 1958 com a publicação No reino da Dinamarca. Para além de poesia, dedicou-se também a prosa, traduções e publicidade. Os seus textos têm como característica uma grande sátira a Portugal e aos portugueses. Trabalhou ainda temas como a solidão, o amor, o sonho e a passagem do tempo. Possui obras como Poemas com endereço (1962), As andorinhas não têm restaurante (1970), Entre a cortina e a vidraça (1972) e Uma coisa em forma de assim (1980).

Seis poemas confiados à memória de Nora Mitrani
                                         Nora Mitrani - A Paixão Ardente.  Fotógrafo:Fernando Lemos, 1949
V
Eu estava bom p’ra morrer
nesse dia.
Não tinha fome nem sede,
nem alarme ou agonia.

Eu estava tal como está
esse que perdeu a amiga,
o homem que sofreu já
tanto (nem se imagina!)

que ficou bem atestado
de fadiga
e copiou-se em alegre,
mas de uma torpe alegria,

que não era mesmo alegre,
mas alegre se fingia
só para enganar o morto
que dentro de si trazia.

Este é um modo de dizer
em que ninguém acredita,
mas não sei melhor dizer:
era assim que eu me sentia!

A solidão o que era?
O amor o que seria?
Já ninguém à minha espera,
para nenhures é que eu ia.

Eu estava bom p’ra morrer
— e ainda hoje morria…
Assim me quisesses dar
e tirar — só tu! — a vida.
                                           Alexandre O’Neill

Este poema encontra-se na obra Poemas com endereço (1962) e faz parte de um conjunto de poemas que o autor escreveu dedicados a Nora Mitrani, uma grande paixão sua, que se suicidou em 1961, deixando O’Neill com um grande desgosto. Estes 6 poemas foram escritos com a mão pesada da dor, um ano após a morte de Nora.
O sujeito poético diz-nos que estava pronto para morrer com a sua amada mas que a vida assim não o quis e que continua cá, fingindo ser feliz  - "não era mesmo alegre/mas alegre se fingia" - quando, no fundo, já ele próprio está morto:"o morto que dentro de si trazia". Mostra-nos um sofrimento profundo de alguém que acabou de perder uma pessoa bastante chegada a si e que agora se encontra sozinho, “Já ninguém à minha espera”.

Luana e Márcia

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