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04 outubro 2020

Antero de Quental e João de Deus

REVISÕES

A minha fé vira-se mais para a terra do que para o céu. O João [de Deus] prefere o céu.  Antero de Quental

Como exemplo dos contributos dos alunos, fica um um texto de J. Matias (11ºA), resposta a um desafio sobre a questão de Deus e do divino em Antero de Quental e em João de Deus (a quem é dedicado o poema "Se é lei, que rege o escuro pensamento".)

Texto de J. Matias

Análise do Poema de Antero de Quental dedicado

a  João de Deus

Se é lei, que rege o escuro pensamento,
Ser vã toda a pesquisa da verdade,
Em vez da luz achar a escuridade,
Ser uma queda nova cada invento;

É lei também, embora cru tormento,
Buscar, sempre buscar a claridade,
E só ter como certa realidade
O que nos mostra claro o entendimento.

O que há de a alma escolher, em tanto engano?
Se uma hora crê de fé, logo duvida;
Se procura, só acha... o desatino!

Só Deus pode acudir em tanto dano:
Esperemos a luz duma outra vida,
Seja a terra degredo, o céu destino.

 

  Feita a pergunta: "Seja a Terra degredo, o céu destino.", o destino da luz que Antero dá aqui aos Homens é reconfortante porém descarta o mundo material como um lugar realmente bom de se viver. O que nos diz isto sobre Antero?", fui desafiado pela minha professora de português a responder eu mesmo a esta pergunta feita por mim. Aqui está sob a forma de uma análise do poema relacionando com a vida do autor, Antero de Quental, a minha proposta.

  Bem, para sabermos o que nos diz a passagem referida sobre o autor precisamos saber um pouco sobre Antero. Antero de Quental foi um poeta e pensador do século XIX, uma lenda literária em Coimbra, mestre do soneto, defensor da modernidade foram algumas das descrições que pude encontrar. Para além disso foi membro e "líder" de uma das mais ricas gerações de intelectuais do seu tempo, a Geração de 70, com membros como Eça de Queirós, Teófilo Braga, Ramalho Ortigão, Guerra Junqueiro e muitos outros, mais tarde transformando-se no grupo autodenominado de "Os Vencidos da Vida".

Nascido a 18 de Abril de 1842 na ilha de São Miguel, nos Açores, descendente de uma das mais antigas e ilustres famílias açorianas, Antero de Quental ganha um gosto pela literatura e recebe uma educação católica (como a maior parte dos jovens da sua altura) e mais tarde vem estudar para a Universidade de Coimbra. Antero envolve-se em lutas académicas e o seu espírito revolucionário e mestria da poesia encantam outros jovens que lá estudavam na altura como é o caso de Eça de Queirós, que numa composição redigida sobre Antero diz:

"Em Coimbra, uma noite,(...) avistei sobre as escadarias da Sé de Nova, (...) um homem, de pé, que improvisava.(...) O homem com efeito cantava o Céu, o Infinito, os mundos que rolam carregados de humanidades, a luz suprema habitada pela ideia pura (...).(...) Então, (...) também me sentei num degrau, (...) num elenvo, como um discípulo.".

Para Eça de Queirós dizer isto sobre Antero, transmite-nos uma ideia do talento deste homem que "cantava o Céu".

Depois desta pequena introdução a Antero ficámos a perceber um pouco quem era Antero, mas quem é João de Deus? Afinal o poema é dedicado "a João de Deus".

João de Deus de Nogueira Ramos, segundo a wikipédia: "foi um eminente poeta lírico e pedagogo, considerado à época o primeiro do seu tempo, e o proponente de um método de ensino da leitura, assente numa Cartilha maternal por ele escrita, que teve grande aceitação popular, sendo ainda utilizado. Gozou de extraordinária popularidade, foi quase um culto, sendo ainda em vida objecto das mais variadas homenagens." .

Tal como Antero, João de Deus estudo na Universidade de Coimbra, porém a partir do ano 1850, com 19 anos de idade, apesar de ter sido alguns anos antes (em relação a Antero) […]. Sabemos que Antero gostava do trabalho de João de Deus, visto que em 1858 a sua obra recebe uma crítica muito positiva no artigo A propósito de um Poeta, publicado no Instituto de Coimbra por Antero de Quental, tendo o poema A João de Deus, sido escrito por volta dessa altura (1860-1862).

Comecemos pela estrutra externa do poema, tal como a maioria dos poemas de Antero é um soneto, devido a ser contítuido por duas quadras e dois tercetos. Para além disso, analisando a métrica dos versos apercebemo-nos de que todos são decassilábicos. Em termos do esquema rimático o poema apresenta seguinte estrutura: ABBA ABBA CDE CDE, ou seja em ambas as quadras o poema apresenta rima emparelhada interpolada e nos tercetos rima cruzada nos tercetos. Agora que acabamos com esta parte iremos analisar o poema de forma a responder à pergunta feita.

Comecemos por analisar as quadras, na primeira e segunda estrofe o sujeito poético estabelece duas “leis” no início de cada quadra, a primeira estabelece que o ser humano tem a sua mente englobada pela escuridão, pela ignorância. A segunda estabelece que “embora cru tormento”, ou seja, que apesar de o Homem estar envolvido pela ignorância este não desiste da procura insaciável, de “sempre buscar a claridade”, o conhecimento, o verdadeiro. Estabelece-se assim uma clara demonstração desta característica do Homem, a procura da verdade, apesar de, pelo que o sujeito nos dá a entender pela primeira estrofe, esta procura ser inútil, tornando-o num cético. Porém, para Antero só existe uma solução para toda esta correria atrás verdade, chega até a questionar-se: "O que há de a alma escolher, em tanto engano?", acabando por recorrer a Deus como a única solução para este dilema, dizendo: "Só Deus pode acudir em tanto dano".  No entanto, apesar de atribuir a Deus a capacidade de o salvar deste sofrimento,   duvida até da sua própria capacidade de distinguir a realidade da escuridão: "Se uma hora crê de fé, logo duvida\Se procura, só acha... o desatino!", voltando outra vez à ideia da salvação por Deus e na confiança que este o vai guiar para a luz, para a verdade.

Numa resposta dada por Antero a M. P. da Rocha Viana, em 1865, demonstra a diferença da visão de Deus para os dois poetas:

"A minha fé vira-se mais para a terra do que para o céu. O João prefere o céu. Mas quem tem culpa deste desacordo é ele mesmo. Pois, terra digna de ele a pisar e viver nela, não valerá bem um céu, qualquer que ele seja? "

Isto à primeira vista não vai de acordo com o que aparece no poema A João de Deus, no entanto, ao afirmar nos últimos dois versos: "Esperemos a luz duma outra vida,\Seja a terra degredo, o céu destino.", Antero de Quental demonstra que a sua fé, de facto, "vira-se mais para a terra do que para o céu." ao contrário de João de Deus, visto que ao acreditar em Deus como o seu guia para a luz, acredita também na luz que está por vir e no mundo em que se encontra, e se este for um degredo seja o céu o bem supremo. Para Antero a fé em Deus tem também de ser clara e racionalizada, apesar ser "lei também, embora cru tormento,\Buscar, sempre buscar a claridade,\E só ter como certa realidade\O que nos mostra claro o entendimento.". Já para João de Deus a fé e a vida na terra servem como para muitos outros católicos anteceder a eternidade, o período do julgamento, e só a partir da fé alcançará a ressureição. Opondo-se à fé de Antero voltada para a terra (o mundo dos vivos), a fé de João de Deus é incondícional e sem espaço para dúvidas (não como Antero: "Se uma hora crê de fé, logo duvida"): "Segues-me sempre... e só por ti suspiro!\Vejo-te em tudo...terra e céu te esconde!\Nunca te vi...cada vez mais te admiro!" (João de Deus, in Deus?)*.

   E então  "O que nos diz isto sobre Antero?", diz-nos que Antero era um homem de fé, que a sua fé é uma fé clara e racional e que por vezes duvida da sua fé e de si mesmo, que deposita as suas crenças no presente, no agora, e não no futuro distante que é mais incerto mas que decerteza há-de vir e será a sua salvação, o seu destino. 

Espero ter conseguido responder à questão colocada.

 

*Deus?

                          A Marco Antonio Canini

Quem me terá trazido a mim suspenso,

Atónito, alheado... ou a quem devo,

Enfim, dizer que em nada mais me enlevo,

A ninguém mais do coração pertenço?

 

Se desço ao vale, ao alcantil me enlevo,

Quem é que eu busco, em quem será que eu penso?

És tu memória de horizonte imenso

Que me enchei alma d'um eterno enlevo?...

 

Segues-me sempre... e só por ti suspiro!

Vejo-te em tudo...terra e céu te esconde!

Nunca te vi...cada vez mais te admiro!"


Nunca essa voz à minha voz responde...

E eco fiel até até do ar que aspiro,

Sinto-te o hálito!... em minha alma ou onde?

João de Deus



Autor:
J. Matias, aluno do 11º A.19-20

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