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30 outubro 2019

Contra os fantasmas!

Para evitar que leiam «porcarias» mastigadas e cheias de «clichés» estafados, deixo um texto com informação para refletirem sobre os TEMAS que sinalizámos em aula:

- Dimensão crítica e pedagógica de FLS - ensinamento para o seu tempo (e para o nosso?)
- Liberdade individual - qual o papel dos homens no destino pessoal e das nações?
- Portugal - do tempo da história ao tempo de Garrett
- Sebastianismo - mito paralizante?
- Varrer os fantasmas - em nome do Portugal futuro

"(...)a obra de Garrett não deixa de ser uma crítica mais ou me­nos velada à política vigente, ressaltando a revolta e suble­vação de um homem (Manuel de Sousa) contra a tirania de um regime imposto, e em prol do elevado valor da liberdade e da in­dependência ideológica. Imagem ficcional do empenhamento político-ideológico do próprio Garrett, o heroísmo de Manuel de Sousa deve ser interpre­tado como um significativo acto de vontade, por parte de um homem que preza a liberdade contra todas as formas de tirania. "

Por fim, voltemos ao tempo recriado pela intriga da peça e à sua especular relação com a época da escrita. É muito significativa a associação do significado central do desas­tre da batalha fatídica no norte de África (4 de Agosto de 1578) e a génese do Sebas­tianismo com o presente da escrita da peça, como advertem vários críticos. De facto, a interpretação do Frei Luís de Sousa não pode esquecer a actuante presença do Sebastianismo e o que este mito do Desejado sig­nificava na concepção ontológico-cultural de Portugal como nação. Para Garrett, desencan­tado com o rumo da nação, umbilicalmente ligado a um passado quinhen­tista, e vivendo à sombra de uma pesada memória, o Portugal de Oitocentos só teria futuro liber­tando-se dessa persistente, infrutífera e mortal nostalgia passadista. Para compreendermos melhor esta abordagem interpretativa, detenhamo-nos brevemente em três ideias interligadas na interpretação negativa do Sebastianismo: a concepção garrettiana do tempo como devir; a relevância e significados do Sebastianismo na obra garrettiana; a peça como encenação da tragédia colectiva de um povo.

Com efeito, as crenças sebastianistas eram sinónimo de passadismo, de estéril paragem do tempo. Ao contrário, o movimento da História tem um sentido projectivo, é um devir que se não compadece com nostálgicos regressos ao passado. Regressar ao passado é sinónimo de morte do presente e de sério comprometimento do futuro. Como vemos, o imobilismo ou passadismo sebastianista constitui uma filosofia da história profundamente oposta ao modo como escritor concebe o tempo de um modo tão manifestamente dinâmico, sentimento expresso em várias obras.(...)
Como sabemos, ao longo da peça, são várias as referências expressas à mítica figura de D. Sebastião. Começam no primeiro diálogo entre Telmo e D. Madalena, que censura ao velho aio as suas crendices sebásticas: “(...) mas as tuas palavras misteriosas, as tuas alusões frequentes a esse desgraçado rei D. Sebastião, que o seu mais desgraçado povo ainda não quis acreditar que morresse, por quem ainda espera em sua leal incredulidade!” (I, 2). Prosseguem as crenças sebastianistas na entusiasmada fala de Maria de Noronha, que, para grande aflição da mãe, acredita piamente no regresso do desejado monarca: “(...) é o outro, é o da ilha encoberta onde está el-rei D. Sebastião,
que não morreu e que há-de vir um dia de névoa muito cerrada... Que ele não morreu; não é assim, minha mãe?” (I, 3). Perante o raciocínio oposto da mãe, a jovem mostra-se convicta porta-voz do Sebastianismo e contra-argumenta:
“Voz do povo, voz de Deus, minha senhora mãe: eles que andam tão crentes nisto, alguma coisa há-de ser. Mas ora o que me dá que pensar é ver que, tirado aqui o meu bom velho Telmo (Chega-se toda para ele, acarinhando-o.), ninguém nesta casa gosta de ouvir falar em que escapasse o nosso bravo rei, o nosso santo rei D. Sebastião. Meu pai, que é tão bom português, que não pode sofrer estes castelhanos, e que até às vezes dizem que é de mais o que ele faz e o que ele fala, em ouvindo duvidar da morte do meu querido rei D. Sebastião... ninguém tal há-de dizer, mas põe-se logo outro, muda de semblante, fica pensativo e carrancudo: parece que o vinha afrontar, se voltasse, o pobre do rei.” (I, 3).
De acordo com o importantíssimo texto disdascálico que antecede o II Acto, destacavam-se, pela sua singular localiza­ção, os retratos de três figuras simbólicas (D. Sebastião, Camões e D. João de Portugal), que merecem, sucessivamente, a curiosa e entusiasmada atenção de Maria, que, em diálogo com Telmo Pais, também alude às profecias sebásticas.
"Olha: (designando o de el-rei D. Sebastião) aquele do meio, bem o sabes se o conhecerei; é o do meu querido e amado rei D. Sebastião. Que majestade! que testa aquela tão austera, mesmo dum rei moço e sincero ainda, leal, verdadeiro, que tomou a sério o cargo de reinar, e jurou que há-de engrandecer e co­brir de glória o seu reino! Ele ali está... E pensar que havia de morrer às mãos de mouros, no meio de um deserto, que numa hora se havia de apagar toda a ousadia reflectida que está naqueles olhos rasgados, no apertar daquela boca!... Não pode ser, não pode ser. Deus não podia consentir em tal" (II, 1)

O mito do Encoberto é perspecti­vado, negativa­mente, como sinónimo de paragem no tempo, de irrealidade, de sacrifício do he­rói na ca­tástrofe fi­nal. O regresso do (falso) D. Sebastião, na figura de D. João, implica a alteração do rumo da história e o aniqui­lamento. Por isso, diante do espelho do seu retrato, o representante do Portugal morto e sebástico se define como Ninguém[1]. O Portugal do futuro não pode alimentar-se de estéreis utopias passadis­tas. É nesta "implícita condenação da expectativa sebástica" (Picchio, 1967: 117), que radica o aprovei­tamento mítico do dramaturgo:
"Assim Almeida Garrett vem colocar-se do lado daqueles que, antes ou depois dele, fizeram o pro­cesso do sebastianismo, vendo, na persistência do mito do Desejado, uma vã utopia, uma moral doentia e passiva ou uma forma alienatória de justificar novas ou antigas formas de poder" (Vieira, 1990: 389).
            Podemos assim dizer que o incêndio da casa de Manuel de Sousa, além de viril acto de patriotismosimboliza a resoluta busca de uma nova ordem e novo espaço para uma família assombrada pelo passado, isto é, uma nação que vivia à sombra de mitos, sonhos ou utopias. O regresso ao velho palácio de D. João de Portugal só pode representar um anacrónico e impossível regresso trágico ao passado. A História não pode regredir e imobilizar-se num pretérito mítico. O Portugal moderno tem de, edipianamente, matar o velho pai, para mudar o rumo da sua história (...). Nem que para isso tenha de se imolar pelo sacrifício da própria vida, como o faz, voluntariosamente, Manuel de Sousa. (...)
O drama de Garrett fala de Portugal, num momento em que ele se interroga pela boca de Garrett. É um país que vive um presente hipotecado, à sombra de um obcecado sentimento de saudade passadista e sebastianista. Neste sentido, é uma peça assombrada, habitada por dois fantasmas – um quase fantasma (D. João de Portugal) e um ou­tro fantasma mítico (D. Sebastião).

J. Cândido Martins, Para uma sistematização didáctica das leituras interpretativas do Frei Luís de Sousa de Almeida Garrett

(Univ. Católica Portuguesa – Braga)
Disponível, em PDF, em alfarrabio.di.uminho.pt/vercial/zips/candid12.rtf


[1] Como demonstra Vasco Graça Moura (1999: 56), Garrett coloca uma genial coloquialidade ao serviço da intriga de profundo desenvolvimento trágico, com uma leitura subentendida, mas inegável – o sonho de gran­deza con­duziu Portugal ao pesadelo da desgraça nacional, a um certo sentimento de falência e de finis patriae, nomea­damente quando perspectiva pessoanamente o destino de Portugal, "este lúgubre país que já não é nada nem ninguém, nem tem sabido sê-lo, da dominação filipina aos so­bressaltos e sucessivos afundamentos do Constitucionalismo".




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