- Dimensão crítica e pedagógica de FLS - ensinamento para o seu tempo (e para o nosso?)
- Liberdade individual - qual o papel dos homens no destino pessoal e das nações?
- Portugal - do tempo da história ao tempo de Garrett
- Sebastianismo - mito paralizante?
- Varrer os fantasmas - em nome do Portugal futuro
"(...)a
obra de Garrett não deixa de ser uma crítica mais ou menos velada à política
vigente, ressaltando a revolta e sublevação de um homem (Manuel de Sousa)
contra a tirania de um regime imposto, e em prol do elevado valor da liberdade
e da independência ideológica. Imagem ficcional do empenhamento político-ideológico
do próprio Garrett, o heroísmo de Manuel de Sousa deve ser interpretado como
um significativo acto de vontade, por parte de um homem que preza a liberdade
contra todas as formas de tirania. "
Por
fim, voltemos ao tempo recriado pela intriga da peça e à sua especular relação
com a época da escrita. É muito significativa a associação do significado
central do desastre da batalha fatídica no norte de África (4 de Agosto de
1578) e a génese do Sebastianismo com o presente da escrita da peça, como
advertem vários críticos.
De facto, a interpretação do Frei Luís de Sousa não pode esquecer a
actuante presença do Sebastianismo e o que este mito do Desejado significava
na concepção ontológico-cultural de Portugal como nação. Para Garrett, desencantado
com o rumo da nação, umbilicalmente ligado a um passado quinhentista, e
vivendo à sombra de uma pesada memória, o Portugal de Oitocentos só teria
futuro libertando-se dessa persistente, infrutífera e mortal nostalgia
passadista. Para compreendermos melhor esta abordagem interpretativa,
detenhamo-nos brevemente em três ideias interligadas na interpretação negativa
do Sebastianismo: a concepção garrettiana do tempo como devir; a relevância e
significados do Sebastianismo na obra garrettiana; a peça como encenação da
tragédia colectiva de um povo.
Com
efeito, as crenças sebastianistas eram sinónimo de passadismo, de estéril
paragem do tempo. Ao contrário, o movimento da História tem um sentido
projectivo, é um devir que se não compadece com nostálgicos regressos ao
passado. Regressar ao passado é sinónimo de morte do presente e de sério
comprometimento do futuro. Como vemos, o imobilismo ou passadismo sebastianista
constitui uma filosofia da história profundamente oposta ao modo como escritor
concebe o tempo de um modo tão manifestamente dinâmico, sentimento expresso em
várias obras.(...)
Como sabemos, ao longo da peça, são várias as
referências expressas à mítica figura de D. Sebastião. Começam no primeiro
diálogo entre Telmo e D. Madalena, que censura ao velho aio as suas crendices
sebásticas: “(...) mas as tuas palavras misteriosas, as tuas alusões frequentes
a esse desgraçado rei D. Sebastião, que o seu mais desgraçado povo ainda não
quis acreditar que morresse, por quem ainda espera em sua leal incredulidade!”
(I, 2). Prosseguem as crenças sebastianistas na entusiasmada fala de Maria de
Noronha, que, para grande aflição da mãe, acredita piamente no regresso do
desejado monarca: “(...) é o outro, é o da ilha encoberta onde está el-rei D.
Sebastião,
que
não morreu e que há-de vir um dia de névoa muito cerrada... Que ele não morreu;
não é assim, minha mãe?” (I, 3). Perante o raciocínio oposto da mãe, a jovem
mostra-se convicta porta-voz do Sebastianismo e contra-argumenta:
“Voz do povo, voz de Deus, minha senhora mãe: eles que
andam tão crentes nisto, alguma coisa há-de ser. Mas ora o que me dá que pensar
é ver que, tirado aqui o meu bom velho Telmo (Chega-se toda para ele,
acarinhando-o.), ninguém nesta casa gosta de ouvir falar em que escapasse o
nosso bravo rei, o nosso santo rei D. Sebastião. Meu pai, que é tão bom
português, que não pode sofrer estes castelhanos, e que até às vezes dizem que
é de mais o que ele faz e o que ele fala, em ouvindo duvidar da morte do meu
querido rei D. Sebastião... ninguém tal há-de dizer, mas põe-se logo outro,
muda de semblante, fica pensativo e carrancudo: parece que o vinha afrontar, se
voltasse, o pobre do rei.” (I, 3).
De acordo com o importantíssimo texto disdascálico que antecede o II Acto, destacavam-se, pela sua singular localização, os retratos de três figuras simbólicas (D. Sebastião, Camões e D. João de Portugal), que merecem, sucessivamente, a curiosa e entusiasmada atenção de Maria, que, em diálogo com Telmo Pais, também alude às profecias sebásticas.
"Olha: (designando o de el-rei D. Sebastião)
aquele do meio, bem o sabes se o conhecerei; é o do meu querido e amado rei D.
Sebastião. Que majestade! que testa aquela tão austera, mesmo dum rei moço e
sincero ainda, leal, verdadeiro, que tomou a sério o cargo de reinar, e jurou
que há-de engrandecer e cobrir de glória o seu reino! Ele ali está... E pensar
que havia de morrer às mãos de mouros, no meio de um deserto, que numa hora se
havia de apagar toda a ousadia reflectida que está naqueles olhos rasgados, no
apertar daquela boca!... Não pode ser, não pode ser. Deus não podia consentir
em tal" (II, 1)
O
mito do Encoberto é perspectivado, negativamente, como sinónimo de paragem no
tempo, de irrealidade, de sacrifício do herói na catástrofe final. O
regresso do (falso) D. Sebastião, na figura de D. João, implica a alteração do
rumo da história e o aniquilamento. Por isso, diante do espelho do seu
retrato, o representante do Portugal morto e sebástico se define como Ninguém[1].
O Portugal do futuro não pode alimentar-se de estéreis utopias passadistas. É
nesta "implícita condenação da expectativa sebástica" (Picchio, 1967:
117), que radica o aproveitamento mítico do dramaturgo:
"Assim Almeida Garrett vem colocar-se do lado
daqueles que, antes ou depois dele, fizeram o processo do sebastianismo,
vendo, na persistência do mito do Desejado, uma vã utopia, uma moral
doentia e passiva ou uma forma alienatória de justificar novas ou antigas
formas de poder" (Vieira, 1990: 389).
Podemos assim dizer que
o incêndio da casa de Manuel de Sousa, além de viril acto de
patriotismosimboliza a resoluta busca de uma nova ordem e novo espaço para uma
família assombrada pelo passado, isto é, uma nação que vivia à sombra de mitos,
sonhos ou utopias. O regresso ao velho palácio de D. João de Portugal só pode
representar um anacrónico e impossível regresso trágico ao passado. A História
não pode regredir e imobilizar-se num pretérito mítico. O Portugal moderno tem
de, edipianamente, matar o velho pai, para mudar o rumo da sua história (...). Nem que para isso tenha
de se imolar pelo sacrifício da própria vida, como o faz, voluntariosamente,
Manuel de Sousa. (...)
O drama de Garrett fala de Portugal, num momento em
que ele se interroga pela boca de Garrett. É um país que vive um presente
hipotecado, à sombra de um obcecado sentimento de saudade passadista e
sebastianista. Neste sentido, é uma peça assombrada, habitada por dois
fantasmas – um quase fantasma (D. João de Portugal) e um outro fantasma mítico
(D. Sebastião).
J. Cândido Martins, Para uma sistematização didáctica das leituras interpretativas do Frei Luís de Sousa de Almeida Garrett
(Univ. Católica Portuguesa – Braga)
Disponível, em PDF, em alfarrabio.di.uminho.pt/vercial/zips/candid12.rtf
[1] Como demonstra Vasco Graça Moura (1999: 56), Garrett coloca uma
genial coloquialidade ao serviço da intriga de profundo desenvolvimento
trágico, com uma leitura subentendida, mas inegável – o sonho de grandeza conduziu
Portugal ao pesadelo da desgraça nacional, a um certo sentimento de falência e
de finis patriae, nomeadamente quando perspectiva pessoanamente o
destino de Portugal, "este lúgubre país que já não é nada nem ninguém, nem
tem sabido sê-lo, da dominação filipina aos sobressaltos e sucessivos
afundamentos do Constitucionalismo".
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