“GEORGE”: A ERRÂNCIA EM BUSCA DA LIBERDADE
Renata Quintella de OLIVEIRA
"George" e a questão da(s) identidade(s)
Ao iniciarmos a leitura do conto “George” percebemos, logo nas primeiras linhas, um elemento que causa estranhamento: a descrição dos vestidos daquelas que, a princípio, seriam duas personagens: “Trazem ambas vestidos claros, amplos, e a aragem empurra-os de leve, um deles para o lado direito de quem vai, o outro para o lado direito de quem vem, ambos na mesma direção, naturalmente.” (CARVALHO, 1995, p. 32).O trecho transcrito nos remete à imagem do espelho, já que os dois sujeitos que caminham têm seus vestidos empurrados em sentido contrário, mas “ambos na mesma direção, naturalmente”, como uma imagem refletida em espelho. A partir da leitura desse trecho e de tal reflexão, sugere-se a possibilidade de tratar-se de uma só pessoa e não duas como se havia imaginado antes.A questão, portanto, que nos parece ser a principal deste conto, (mas não a única) é a fragmentação da representação unitária da identidade, já que a personagem George dialoga com seu passado e com seu futuro personificados em Gi e Georgina, respectivamente.
Diversos críticos, como o já citado Stuart Hall (2006, p. 12), apontaram para uma compreensão da identidade como algo complexo e fragmentado: “O sujeito, previamente vivido como tendo uma identidade unificada e estável, está se tornando fragmentado; composto não de uma única, mas de várias identidades, algumas vezes contraditórias ou não resolvidas.”Gi, essa suposta “outra” pessoa com quem George se encontra, revela-se como alguém mais jovem. A descrição de Gi apresenta-se extremanente difusa: faltam-lhe contornos precisos. Ora, se considerarmos Gi uma outra figuração de George, essa descrição imprecisa poderia ser explicada como o resgate pela memória, já que esta sempre recupera factos de forma difusa. George estaria, então, travando um diálogo com o seu passado, através da mediação da memória, que o resgata sem precisão. Gi seria quem George foi um dia e quer esquecer.
Para complexificar ainda mais esta questão, surge na narrativa Georgina. Agora, mais velha que George, em oposição à Gi, Georgina passa a aconselhar a artista plástica renomada. A narrativa dá diversos indícios de que se trata, de facto, de um desdobramento do próprio sujeito que finge ser outro, ao projetar-se, agora no futuro.
À maneira de Fernando Pessoa, Maria Judite de Carvalho constrói um ser disperso, sem unidade aparente. George aparece multifacetada e, tentando compreender-se, trava um intenso diálogo (ou monólogo?) consigo própria. O narrador apresenta ao leitor o que se passa no espaço interior de George: o confronto incessante entre esses diferentes “eus”. Tentando compreender e esquecer o que foi, George dialoga com Gi, jovem de 18 anos e ainda ingénua e inexperiente em relação às decisões importantes da vida. Tentando visualizar seu futuro, George dialoga com Georgina, senhora de quase 70 anos, já vivida, experiente e fisicamente decrépita, que não é, contudo, quem George quer ser.
Nesta busca incessante e permanente, a personagem George procura uma explicação que confira sentido à sua existência interior. Terá encontrado? Ou julga ter encontrado pelo facto de ser bem sucedida, artística e financeiramente?
Apesar das visíveis rupturas com o modelo de narrativas tradicionais, uma questão constante em “George” e que se mantém desde os tempos de Camões, é a febre de Além. Na narrativa de Maria Judite de Carvalho, essa questão apresenta-se amalgamada com outra, esta sim, atual e transgressora: a quebra de valores destinados à mulher.
Conforme Magalhães (1994, p. 189), durante o período das grandes navegações, “[...] estabeleceu-se uma distinção entre a cosmovisão feminina e a masculina: os homens partiam e as mulheres ficavam.” A ruptura desse padrão ocorre em “George”, no momento em que a protagonista do conto deseja abandonar a sua terra e os padrões patriarcais referentes ao seu lugar de origem: “Já não sabe, não quer saber, quando saiu da vila e partiu à descoberta da cidade grande, onde, dizia-se lá em casa, as mulheres se perdem. Mais tarde partiu por além terra, por além mar.” (CARVALHO, 1995, p. 33).
Contradizendo o condicionamento das mulheres, estabelecido durante o período áureo do povo português, Gi abandona seu lar e seus costumes, rompendo com o paradigma inerente à cultura portuguesa até meados do século XX. A saída da personagem de sua terra natal revela um desejo voraz de além, de liberdade e de reconfiguração identitária: “Fez-se loiros os cabelos, de todos os loiros, um dia ruivos por cansaço de si, mais tarde castanhos, loiros de novo, esverdeados, nunca escuros, quase pretos, como dantes eram.” (CARVALHO, 1995, p. 33-34).
A personagem vê sua versão mais jovem de forma esfumada, como quem se recusa a enxergar sua origem, e, mais tarde, vê sua versão futura (a senhora experiente que dá conselhos) e se irrita quando esta sugere que sua visão de liberdade lhe trará solidão. Para remediar esta situação, a personagem abriga-se, por hora, em pensamentos e em determinadas certezas que só poderão vir a ser desconstruídas com a maturidade.
Ao se deparar com seu passado, aos dezoito anos, George descobre uma jovem fechada em um local enraizado, no qual o tempo parara e o acesso ao conhecimento desejado jamais chegaria. A casa dos pais e a vila circunscrevem os anseios de Gi ao casamento, à maternidade e ao exercício da pintura como distração: “E eles acham que eu tenho muito jeitinho, que hei-de um dia ser uma boa senhora da vila, uma esposa exemplar, uma mãe perfeita, tudo isso com muito jeito para o desenho. Até posso fazer retrato das crianças quando tiver tempo [...]” (CARVALHO, 1995, p. 37).
Dessa forma, Gi seria respeitada na casa (espaço privado) e na vila (espaço público) e reproduziria o modelo feminino imposto pela sociedade na qual nascera. As relações de poder estabelecidas, nos espaços pertencentes à jovem Gi, são, para George, um profundo aprisionamento. A protagonista não é incluída ou ela mesma se exclui do modelo predeterminado.
A busca de George: a febre de além
Por não aceitar os espaços designados para Gi, George resolveu partir. Em busca de uma identidade, o sujeito da narrativa torna-se transgressor, rompe com as antigas relações, transforma sua aparência e habita novos espaços. Ao abandonar a sua raiz – a casa na vila – George cria asas e, ao não desejar criar vínculos, aluga casas com mobília (novo espaço privado) e adota o estilo de vida da cidade grande (novo espaço público).
Na cidade, a personagem se desenvolve cultural e economicamente. Torna-se uma profissional das artes: a pintura, que seria um hobby para Gi, transforma-se em profissão para George. Ela ganha o mundo, ao viajar para vários países. A relação de submissão, na casa dos pais e na vila, é substituída por uma relação de poder absoluto sobre si. Nesse novo espaço público e privado, a estabilidade do sujeito não depende do casamento ou dos filhos que a completarão como mulher. A possibilidade de completude se baseia nas várias experiências amorosas e realizações profissionais. O respeito adquirido não se associa ao seu caráter como exímia dona de casa, mas como alguém que multiplicou seu capital através do próprio trabalho.No encontro com Georgina, a narrativa propõe uma reflexão a respeito da efemeridade do poder numa sociedade excludente.
De acordo com a futura versão de George, a casa mobiliada e a cidade grande não lhe farão sentido em sua velhice. Sua capacidade de produção não será mais a mesma e ela será excluída do jogo de interesses. Através da fala de Georgina, a narrativa nos deixa a seguinte questão: nessa constante troca de espaços, de valores e de ausência de determinados conhecimentos, chegará George a algum lugar?: “E, se for um pouco sensata, ou se souber olhar em volta, descobrirá que este mundo já não lhe pertence, é dos outros, dos que julgam que Baden Powell é um tipo que toca guitarra e que Levi Strauss é uma marca de calças.” (CARVALHO, 1995, p. 32).
A vontade da personagem é o motor que impulsiona todas as suas conquistas, principalmente, a ânsia de liberdade. Por isso, George, ao optar pela não criação de laços afetivos permanentes, não quer se prender a móveis e família. Dessa forma, estará sempre pronta a partir.
[...]
Além disso, o nome George não é um nome próprio típico de Portugal. Uma família portuguesa tradicional não nomearia um de seus membros por George, o que reafirma a negação de uma identidade originária e o desejo de ser outro. Observa-se, assim, uma diluição de fronteiras antes demarcadas, no que diz respeito às questões de género, à temporalidade (passado, presente, futuro) e aos níveis do real e do imaginário, presentes no espaço textual.
O aparente diálogo apresenta-se, ao longo do conto, ora em itálico, representando a voz do imaginário (Gi/Georgina). “– Ninguém ouve ninguém, não sabes? Que pretendeste com a vida, mulher?” (CARVALHO, 1995, p. 38, grifo do autor), ora em redondo, representando a voz situada no real (George). Tais recursos gráficos possibilitam ao leitor uma interpretação mais precisa, no que se refere à distinção das “vozes” das possíveis personagens.
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A reconfiguração identitária: o ser melancólico
Segundo Faria (2002, p. 9-10), o conto “George”, ao revisitar um dos eixos paradigmáticos da ficção portuguesa – o partir e o ficar – “[...] inscreve a errância de um sujeito pelo mundo, capaz de viajar por dentro de si mesmo, em tempos e espaços diferenciados, desdobrando-se e dispersando-se naquela que foi, aos 18 anos (‘Gi’) e naquela que jamais gostaria de ser (‘a velha Georgina’).”
2 comentários:
O texto tem cortes assinalados com [ ]. A sintaxe do Português do Brasil foi mantida. Apenas se altera a ortografia em "facto" e "sinónimo".
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