Na
sequência do texto informativo que trabalharam no exercício, foi possível
localizar o artigo no Jornal PÚBLICO (ver artigo completo). Assim, percebe-se
melhor a questão das «marginálias» e do interesse que este exemplar desperta.
Particularmente interessante é a imagem que acompanha o artigo e a referência
ao escritor Jorge de Sena, que na altura da compra era professor de Literatura
de Língua Portuguesa na Universidade de Wisconsin, nos Estados Unidos.
Camões no Texas
O centro de investigação Harry Ransom da Universidade do Texas em Austin possui um dos raros exemplares da primeira edição de Os Lusíadas ,
impressa em 1572, em Lisboa. Camonianos defendem que este exemplar
pertenceu ao poeta português, sendo por isso conhecido como o “de
Camões”.
Ler e examinar um dos raros exemplares sobreviventes da primeira edição de Os Lusíadas
– poema épico de Luís de Camões (1524?-1580) –, impressa em 1572, é
uma cerimónia quase religiosa, como se tivéssemos ido parar a uma cena
do filme O Nome da Rosa .
Esta experiência pode ser realizada no Harry
Ransom Center (HRC), Centro de Investigação de Humanidades no campus
da Universidade do Texas em Austin (UT Austin), onde está o exemplar
que dizem ter pertencido ao próprio Camões e é um dos mais importantes
entre os 34 que existem espalhados por três continentes.

Qualquer pessoa pode ver a obra, mas estes requisitos são obrigatórios para se ter acesso à sala de visualização. É também recomendável contactar a instituição com 24 horas de antecedência, porque o livro está guardado num cofre.
Depois de feita a requisição da obra, uma das
bibliotecárias aproxima-se, segurando com as duas mãos uma caixa
vermelha de capa dura. Com muito cuidado desata os laços, abre a caixa,
põe-na sobre a mesa, retira o livro e pousa-o sobre suportes revestidos
de veludo. O visitante pode então folhear o livro, tentar ler as
marginálias (comentários escritos à mão nas margens), com a ajuda de
duas lupas, identificando as diferenças ortográficas em relação aos dias
de hoje. Céu era ceo, muito era muy, e as palavras hoje terminadas em ão acabavam em am. Não era nam.
A experiência de ver o exemplar de Os Lusíadas,
considerado o mais importante dos que existem por conter manuscritos de
uma testemunha ocular da morte de Luís de Camões, é entendida por
alguns como um mapa literário para regressar ao passado. A jornalista
brasileira Heloísa Aruth Sturm, quando era estudante de mestrado na
Universidade do Texas, em 2010, analisou este exemplar durante um
semestre para a disciplina de História do Livro. Todos os alunos tinham
de escolher um livro raro, analisá-lo e escrever um artigo académico.
Interessada em literatura colonial, Heloísa soube desta cópia de Os Lusíadas
através do seu orientador, Ivan Teixeira, investigador brasileiro e na
altura professor na UT Austin. A aluna ia pelo menos uma vez por semana
ao HRC para analisar Os Lusíadas. Tinha medo de danificar o
livro, por isso usava sempre luvas para o folhear. Sentia-se “num
convento em pleno século XVI”. A paranóia era tão grande, diz ela, que
“às vezes, até tomava cuidado para não ficar respirando em cima do
livro”.
A edição “de Camões”
No entanto, não são muitos os que vivem esta experiência literária de Heloísa. Richard W. Oram, curador de livros raros do Harry Ransom Center, desde 1991, diz que este exemplar de Os Lusíadas raramente é requisitado. Porém, a sua aquisição pela Universidade do Texas tem sido de extrema utilidade para produção académica mundial sobre a obra de Camões.
No entanto, não são muitos os que vivem esta experiência literária de Heloísa. Richard W. Oram, curador de livros raros do Harry Ransom Center, desde 1991, diz que este exemplar de Os Lusíadas raramente é requisitado. Porém, a sua aquisição pela Universidade do Texas tem sido de extrema utilidade para produção académica mundial sobre a obra de Camões.
K. David Jackson, director dos estudos de Português, na
Universidade de Yale, foi professor na Universidade do Texas em Austin,
entre 1974 e 1993. Conta ao PÚBLICO, por email, que a universidade já
tinha adquirido o livro quando ele foi contratado por esta instituição
texana. E quando deu um seminário no Harry Ransom Center usou o livro
como recurso. Na altura, mostrou-o à filóloga italiana e especialista em
literatura medieval portuguesa Luciana Stegagno Picchio (1920-2008) e
“ela ficou fascinada” com os comentários escritos à mão nas margens do
livro, a marginália. Em 2003, o investigador publicou um CD-ROM, Luís de Camões e a Primeira Edição d’Os Lusíadas, 1572, com 29 exemplares da primeira edição, de várias bibliotecas internacionais.
O
trabalho foi apresentado na Fundação Luso-Americana, em Lisboa. Na
introdução textual desse CD, K. David Jackson explica que este exemplar
foi essencial e de extrema influência para a academia, por causa das
suas qualidades raras, como o “comentário marginal assinado por frei
Joseph Índio, padre do Sul da Índia, convertido ao cristianismo, que
Camões deveria ter conhecido, que era pelo menos 30 anos mais velho do
que ele, tendo chegado a Lisboa em 1501 com a frota de Cabral.” O
que atesta a relação entre esse frei e Camões são os manuscritos nas
margens nas primeiras páginas do volume. Todas estes dados levaram os
investigadores a referir-se a este exemplar como "de Camões". Dizem que o
poeta o teria consigo, quando frei Joseph o terá assistido no leito de
morte.
“De Camões” para os Estados Unidos
Parte da marginália é em espanhol, incluindo traduções de palavras portuguesas. Este facto permitiu aos investigadores concluírem também que este exemplar pertenceu ao “Convento de Carmelitas Descalços de Guadalcázar”, em Espanha, da ordem a que pertencia frei Joseph Índio desde que chegou a Portugal. Tudo indica que o padre levou consigo o exemplar de Portugal para Espanha ainda no século XVI, logo após a morte de Camões, como explica K. David Jackson no CD-ROM. Diz ainda o investigador americano, no seu artigo de introdução ao CD-ROM, que no século XIX o livro chegou às mãos do diplomata britânico John Hookam Frere (1769-1846), em Sevilha, e, em 1812, foi doado para a Holland House, onde permaneceu durante mais de um século, com excepção de um empréstimo de curta duração a Sousa Botelho, morgado de Mateus, que o usou para preparar a sua própria edição de Os Lusíadas, publicada em Paris em 1817.
Parte da marginália é em espanhol, incluindo traduções de palavras portuguesas. Este facto permitiu aos investigadores concluírem também que este exemplar pertenceu ao “Convento de Carmelitas Descalços de Guadalcázar”, em Espanha, da ordem a que pertencia frei Joseph Índio desde que chegou a Portugal. Tudo indica que o padre levou consigo o exemplar de Portugal para Espanha ainda no século XVI, logo após a morte de Camões, como explica K. David Jackson no CD-ROM. Diz ainda o investigador americano, no seu artigo de introdução ao CD-ROM, que no século XIX o livro chegou às mãos do diplomata britânico John Hookam Frere (1769-1846), em Sevilha, e, em 1812, foi doado para a Holland House, onde permaneceu durante mais de um século, com excepção de um empréstimo de curta duração a Sousa Botelho, morgado de Mateus, que o usou para preparar a sua própria edição de Os Lusíadas, publicada em Paris em 1817.
Foi
na década de 1960 que o livro foi levado para os Estados Unidos,
tendo-se então iniciado negociações para a sua compra pela Universidade
do Texas. K. David Jackson conta-nos que em 1966 o poeta e dramaturgo
português Jorge de Sena (1919-1978), na época professor de Literatura de
Língua Portuguesa na Universidade de Wisconsin, apanhou o autocarro em
Madison, Wisconsin, onde morava, e viajou durante cerca de 20 horas para
chegar a Austin, capital do Texas, para avaliar o exemplar e dar
consultoria aos curadores do HRC. (...) Aí descobrimos que a obra de Camões custou à universidade um
pouco mais de cem mil dólares, incluindo seguro e transporte, valor que
corresponderia hoje a cerca de 600 mil dólares.
O dilema das duas edições
O exemplar adquirido pela Universidade do Texas tem sido de extrema relevância para os investigadores por ter ajudado a desmistificar as supostas duas edições de 1572. A pesquisa sobre os problemas associados à primeira edição tem-se estendido por mais de três séculos, escreve o investigador de língua e cultura portuguesa na Universidade de Yale K. David Jackson na introdução textual do CD-ROM.
O exemplar adquirido pela Universidade do Texas tem sido de extrema relevância para os investigadores por ter ajudado a desmistificar as supostas duas edições de 1572. A pesquisa sobre os problemas associados à primeira edição tem-se estendido por mais de três séculos, escreve o investigador de língua e cultura portuguesa na Universidade de Yale K. David Jackson na introdução textual do CD-ROM.
Tudo começou em 1685, quando um grande comentarista de Os Lusíadas
observou pela primeira vez que a imagem do pelicano no frontispício (ou
folha de rosto) estava virada em alguns exemplares para o lado esquerdo
do leitor, e em outros para o lado direito. Observações posteriores
identificaram outras diferenças que pareciam estar associadas à posição
do pelicano, como a leitura do sétimo verso da primeira estrofe, que
começa “E entre” no caso do pelicano “à esquerda,” e “Entre” no caso do
pelicano “à direita”. As duas edições ficaram conhecidas como “Ee” e
“E”. O exemplar guardado no Harry Ransom Center classificar-se-ia como
“E”. Mas K. David Jackson refere-se a estas duas edições como um mito
que se fixou no imaginário português.
Desde então, vários
investigadores têm-se dedicado a responder à questão: se há duas edições
diferentes, duas impressões do mesmo impressor, ou ainda uma edição
autêntica e outra falsa(...).
Conforme os escritos académicos de K. David Jackson, Os Lusíadas
é o décimo sexto título publicado pela tipografia e o sexto em língua
portuguesa. Foi impresso por António Gonçalves, que tinha oficina
própria, em Lisboa, na Costa do Castelo.
Apesar de não ser muito
usado, este volume pode ser de extrema valia para várias áreas de
investigação. Afinal, como diz o historiador inglês Peter Burke,
professor emérito em Cambridge, as marginálias funcionam como uma
“evidência da recepção daquilo que o autor emite ao leitor.” Marginálias
dos séculos XV e XVI são entendidas, por alguns investigadores, como a
primeira forma de hipertexto, de narrativa não linear. Peter Burke
defende que as marginálias expressam o que o leitor considera
importante, aprova ou desaprova numa leitura.
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