Ninguém melhor que o próprio autor para falar do que fez, como fez e por quê.
Lê, pois, o texto de José Saramago:
Conhecemos o narrador que se comporta de um modo imparcial, que vai dizendo escrupulosamente o que acontece, conservando sempre a sua própria subjectividade fora dos conflitos de que é espectador. Mas há um outro tipo de narrador, mais complexo, que não tem uma voz única: é um narrador substituível, um narrador que o leitor vai reconhecendo como constante ao longo da narrativa, mas que algumas vezes lhe causará a estranha impressão de ser outro. Digo “outro”, porque ele se colocou num diferente ponto de vista do primeiro narrador. O narrador será também inesperadamente um narrador que se assume como pessoa colectiva. Será igualmente uma voz que não se sabe de onde vem e que se recusa a dizer quem é, ou usa de uma arte maquiavélica que leve o leitor a sentir-se identificado com ele, a ser, de algum modo, ele. E pode finalmente, mas de um modo não explícito, ser a voz do próprio autor, dado que o autor, capaz de fabricar todos os narradores que entender, porquanto ele sabe, e não o esquece nunca, tudo quanto tiver acontecido depois da vida delas [as personagens].
José Saramago, (1999) IN Jornal de Letras
Narrador
Focalização:
Omnisciente
- possui um conhecimento
absoluto, tanto sobre as personagens, como sobre os eventos, os sonhos, os
desejos…;
- move-se no presente, no passado e,
consequentemente, no futuro.
É como um deus na narrativa:
tudo vê e tudo sabe.
Exemplo
(antecipação e comentários):
"
(...) nesta terra de Mafra não há pátios de comédias, não há cantarinas nem
representantes, ópera só em Lisboa, para vir o cinema ainda faltam duzentos
anos, quando houver passarolas a motor, muito custa o tempo a
passar, até que chegue a felicidade, olá."
Interna
a
voz plural, polifónica do narrador revela-se quando adota o ponto de vista de
uma personagem que vive a história, por ex: Sebastiana Maria de Jesus, no
auto-de-fé.
Externa - quando se limita a contar o que vê.
O
narrador de Memorial tem amiúde uma posição interventiva, claramente
subjetiva:
-
quando tece
juízos, opiniões e comentários
-
quando
ironiza no tratamento das personagens (D. João V, por ex.)
-
quando
recorre com frequência à técnica do contraste (ex. início cap. III)
-
quando usa
registos de língua ou marcas da contemporaneidade
Estas últimas estão, amiúde, associadas à ironia :
-
o nome do próprio
Saramago
-
a moda do
bronzeado
-
os cravos do 25
de abril
-
a existência do
cinema como entretenimento
-
o parto sem dor
-
as cores vermelho
e verde da bandeira da república portuguesa
Estatuto do narrador:
É
heterodiegético, na maior parte da obra (não participa na diegese)
É
homodiegético, com a intenção de captar a atenção do narratário que se sente
participante, por ex. em:
"Já
lá vai pelo mar fora o Padre Bartolomeu Lourenço, e nós que iremos fazer
agora, sem a próxima esperança do céu, pois vamos às touradas que é bem
bom divertimento|
Nestas
ocasiões, o narrador cede a sua voz narrativa a outros narradores, como é, por
exemplo, o caso de Manuel Milho, tornando-se assim homodiegético.
–
Por vezes torna-se autodiegético, quando representa um pensamento (não
confundir com os diálogos) de uma personagem:
"e
aquele monstro de pedra a resvalar quando devia estar arado, imóvel quando
deveria mexer-se, amaldiçoado seja tu, mais quem da terra te mandou tirar e a
nós arrastar por estes ermos.”
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