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23 janeiro 2017

Álvaro de Campos - "o filho indisciplinado das sensações"

“E, de repente, (...)surgiu-me impetuosamente um novo indivíduo: Num jacto, e à máquina de escrever, sem interrupção nem emenda, surgiu a Ode Triunfal de Álvaro de Campos – a Ode com esse nome e o homem com o nome que tem.” Fernando Pessoa (na carta a Adolfo Casais Monteiro)



Álvaro de Campos, segundo FP, teve uma educação de Liceu; depois foi para Glasgow, Escócia, estudar engenharia naval, após o que veio viver em Lisboa.


O final do século XIX e o início do século XX trouxeram uma explosão nunca vista de invenções, descobertas, novas dinâmicas sociais, cidades agitadas, um mundo civilizacional e industrializado que consome as vidas, numa estranha mas fascinante voragem.

Amadeu de Sousa Cardoso (1887-1918), o nosso principal pintor modernista.
Viveu em Paris e foi um dos pioneiros deste movimento

As artes plásticas e a literatura sentem o imperativo de dar conta, compreender, valorizar ou questionar essa voragem. Na Europa e nos Estados Unidos surgem vários movimentos artísticos associados ao que veio a chamar-se MODERNISMO:

- Valorizar o novo, o emergente, o dinamismo, a ação, contra a tradição, o saudosismo e a melancolia

- Exaltar o mundo moderno e as suas conquistas: máquinas, obras de engenharia, movimento, voragem, velocidade

- Retratar o espaço urbano, por excelência – cidades, ruas, avenidas, portos, cafés, teatros...


- Num mundo pleno de sensações novas e intensas e de planos que se cruzam/ intercetam, a arte tem de traduzir essa febre, essa voragem
Vejamos como o Sr. engenheiro Álvaro de Campos  traduziu esse mundo impetuoso, brutal, belo,  no mais conhecido poema que espelha esta nova mundanidade - a "Ode Triunfal".

A "Ode Marítima" - que não podem deixar de ler - traz-nos aparentemente a mesma temática, mas é já doutra constelação...



Ode Triunfal

À dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas da fábrica
Tenho febre e escrevo.
Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto,
Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos.


Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r-r eterno!
Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria!
Em fúria fora e dentro de mim,
Por todos os meus nervos dissecados fora,
Por todas as papilas fora de tudo com que eu sinto!
Tenho os lábios secos, ó grandes ruídos modernos,
De vos ouvir demasiadamente de perto,
E arde-me a cabeça de vos querer cantar com um excesso
De expressão de todas as minhas sensações,
Com um excesso contemporâneo de vós, ó máquinas!
(...)
Ó fazendas nas montras! Ó manequins! Ó últimos figurinos!
Ó artigos inúteis que toda a gente quer comprar!
Olá grandes armazéns com várias secções!
Olá anúncios eléctricos que vêm e estão e desaparecem!
Olá tudo com que hoje se constrói, com que hoje se é diferente de ontem!
Eh, cimento armado, beton de cimento, novos processos!
Progressos dos armamentos gloriosamente mortíferos!
Couraças, canhões, metralhadoras, submarinos, aeroplanos!


Amo-vos a todos, a tudo, como uma fera.
Amo-vos carnivoramente.
Pervertidamente e enroscando a minha vista
Em vós, ó coisas grandes, banais, úteis, inúteis,
Ó coisas todas modernas,
Ó minhas contemporâneas, forma actual e próxima
Do sistema imediato do Universo!
Nova Revelação metálica e dinâmica de Deus!
(...)


Eia! eia! eia!
Eia electricidade, nervos doentes da Matéria!
Eia telegrafia-sem-fios, simpatia metálica do Inconsciente!
Eia túneis, eia canais, Panamá, Kiel, Suez!
Eia todo o passado dentro do presente!
Eia todo o futuro já dentro de nós! eia!
Eia! eia! eia!
Frutos de ferro e útil da árvore-fábrica cosmopolita!
Eia! eia! eia! eia-hô-ô-ô!
Nem sei que existo para dentro. Giro, rodeio, engenho-me.
Engatam-me em todos os comboios.
Içam-me em todos os cais.
Giro dentro das hélices de todos os navios.
Eia! eia-hô! eia!
Eia! sou o calor mecânico e a electricidade!
Eia! e os rails e as casas de máquinas e a Europa!
Eia e hurrah por mim-tudo e tudo, máquinas a trabalhar, eia!
Galgar com tudo por cima de tudo! Hup-lá!


Hup-lá, hup-lá, hup-lá-hô, hup-lá!
Hé-la! He-hô! H-o-o-o-o!
Z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z!


Ah não ser eu toda a gente e toda a parte!
«Londres, 1914 — Junho.»
  Álvaro de Campos                                                                             
«Dum livro chamado Arco do Triunfo, a publicar.»   

In Poesia , Assírio & Alvim, ed. Teresa Rita Lopes, 2002,  disponível em Casa Fernando Pessoa, http://casafernandopessoa.cm-lisboa.pt/index.php?id=2245, consultado em 31 de janeeiro de 2012.

Outros poemas de Álvaro de Campos: http://casafernandopessoa.cm-lisboa.pt/index.php?id=2245

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