“E, de repente, (...)surgiu-me impetuosamente um novo indivíduo: Num jacto, e à máquina de escrever, sem interrupção nem emenda, surgiu a Ode Triunfal de Álvaro de Campos – a Ode com esse nome e o homem com o nome que tem.” Fernando Pessoa (na carta a Adolfo Casais Monteiro)
Álvaro de Campos, segundo FP, teve uma educação de Liceu; depois foi para Glasgow, Escócia, estudar engenharia naval, após o que veio viver em Lisboa.
O final do século XIX e o início do século XX trouxeram uma explosão nunca vista de invenções, descobertas, novas dinâmicas sociais, cidades agitadas, um mundo civilizacional e industrializado que consome as vidas, numa estranha mas fascinante voragem.
As artes plásticas e a literatura sentem o imperativo de dar conta, compreender, valorizar ou questionar essa voragem. Na Europa e nos Estados Unidos surgem vários movimentos artísticos associados ao que veio a chamar-se MODERNISMO:
Amadeu de Sousa Cardoso (1887-1918), o nosso principal pintor modernista.
Viveu em Paris e foi um dos pioneiros deste movimento
- Valorizar o novo, o emergente, o dinamismo, a ação, contra a tradição, o saudosismo e a melancolia
- Exaltar o mundo moderno e as suas conquistas: máquinas, obras de engenharia, movimento, voragem, velocidade
- Retratar o espaço urbano, por excelência – cidades, ruas, avenidas, portos, cafés, teatros...
- Num mundo pleno de sensações novas e intensas e de planos que se cruzam/ intercetam, a arte tem de traduzir essa febre, essa voragem
Vejamos como o Sr. engenheiro Álvaro de Campos traduziu esse mundo impetuoso, brutal, belo, no mais conhecido poema que espelha esta nova mundanidade - a "Ode Triunfal".
A "Ode Marítima" - que não podem deixar de ler - traz-nos aparentemente a mesma temática, mas é já doutra constelação...
A "Ode Marítima" - que não podem deixar de ler - traz-nos aparentemente a mesma temática, mas é já doutra constelação...
Ode Triunfal
À dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas da fábrica
Tenho febre e escrevo. Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto, Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos. Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r-r eterno! Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria! Em fúria fora e dentro de mim, Por todos os meus nervos dissecados fora, Por todas as papilas fora de tudo com que eu sinto! Tenho os lábios secos, ó grandes ruídos modernos, De vos ouvir demasiadamente de perto, E arde-me a cabeça de vos querer cantar com um excesso De expressão de todas as minhas sensações, Com um excesso contemporâneo de vós, ó máquinas!
(...)
Ó fazendas nas montras! Ó manequins! Ó últimos figurinos!
Ó artigos inúteis que toda a gente quer comprar! Olá grandes armazéns com várias secções! Olá anúncios eléctricos que vêm e estão e desaparecem! Olá tudo com que hoje se constrói, com que hoje se é diferente de ontem! Eh, cimento armado, beton de cimento, novos processos! Progressos dos armamentos gloriosamente mortíferos! Couraças, canhões, metralhadoras, submarinos, aeroplanos! Amo-vos a todos, a tudo, como uma fera. Amo-vos carnivoramente. Pervertidamente e enroscando a minha vista Em vós, ó coisas grandes, banais, úteis, inúteis, Ó coisas todas modernas, Ó minhas contemporâneas, forma actual e próxima Do sistema imediato do Universo! Nova Revelação metálica e dinâmica de Deus!
(...)
Eia! eia! eia! Eia electricidade, nervos doentes da Matéria! Eia telegrafia-sem-fios, simpatia metálica do Inconsciente! Eia túneis, eia canais, Panamá, Kiel, Suez! Eia todo o passado dentro do presente! Eia todo o futuro já dentro de nós! eia! Eia! eia! eia! Frutos de ferro e útil da árvore-fábrica cosmopolita! Eia! eia! eia! eia-hô-ô-ô! Nem sei que existo para dentro. Giro, rodeio, engenho-me. Engatam-me em todos os comboios. Içam-me em todos os cais. Giro dentro das hélices de todos os navios. Eia! eia-hô! eia! Eia! sou o calor mecânico e a electricidade!
Eia! e os rails e as casas de máquinas e a Europa!
Eia e hurrah por mim-tudo e tudo, máquinas a trabalhar, eia!
Galgar com tudo por cima de tudo! Hup-lá!
Hup-lá, hup-lá, hup-lá-hô, hup-lá!
Hé-la! He-hô! H-o-o-o-o! Z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z!
Ah não ser eu toda a gente e toda a parte!
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«Londres, 1914 — Junho.» |
Álvaro de Campos
«Dum livro chamado Arco do Triunfo, a publicar.»
Outros poemas de Álvaro de Campos: http://casafernandopessoa.cm-lisboa.pt/index.php?id=2245
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