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18 dezembro 2023

Fernando Pessoa e Frederico Garcia Lorca

 Por ocasião da visita de dois professores espanhóis à nossa aula, uma pequena lembrança de dois dos maiores poetas das nossas literaturas.

Bienvenidos, professores Cláudio e Pablo!


(1888-1935)
A espantosa realidade das coisas

É a minha descoberta de todos os dias.

Cada coisa é o que é,

E é difícil explicar a alguém quanto isso me alegra,

E quanto isso me basta.

Basta existir para se ser completo.

Tenho escrito bastantes poemas.

Hei-de escrever muitos mais, naturalmente.

Cada poema meu diz isto,

E todos os meus poemas são diferentes,

Porque cada coisa que há é uma maneira de dizer isto.

Às vezes ponho-me a olhar para uma pedra.

Não me ponho a pensar se ela sente.

Não me perco a chamar-lhe minha irmã.

Mas gosto dela por ela ser uma pedra,

Gosto dela porque ela não sente nada,

Gosto dela porque ela não tem parentesco nenhum comigo.

Outras vezes oiço passar o vento,

E acho que só para ouvir passar o vento vale a pena ter nascido.

Eu não sei o que é que os outros pensarão lendo isto;

Mas acho que isto deve estar bem porque o penso sem esforço,

Nem ideia de outras pessoas a ouvir-me pensar;

Porque o penso sem pensamentos,

Porque o digo como as minhas palavras o dizem.

Uma vez chamaram-me poeta materialista,

E eu admirei-me, porque não julgava

Que se me pudesse chamar qualquer coisa.

Eu nem sequer sou poeta: vejo.

Se o que escrevo tem valor, não sou eu que o tenho:

O valor está ali, nos meus versos.

Tudo isso é absolutamente independente da minha vontade.

7-11-1915, heterónimo Alberto Caeiro

 

(1898-1936)


Federico García Lorca - Aurora


Em plena “capital do mundo”, o que o poeta constata na urbe é a desolação e a ausência de esperança em seus habitantes, desumanizados pela escuridão, pelo barulho, pela ganância e pela insónia, como se saídos fossem de “um naufrágio de sangue”.

J.A.R. – H.C.



La Aurora

La aurora de Nueva York tiene
cuatro columnas de cieno
y um huracán de negras palomas
que chapotean las aguas podridas.

La aurora de Nueva York gime
por lãs inmensas escaleras
buscando entre las aristas
nardos de angustia dibujada.

La aurora llega y nadie la recibe em su boca
porque allí no hay mañana ni esperanza posible.
A veces las moneda sen enjambres furiosos
taladran y devoran abandonados niños.

Los primeros que salen comprenden com sus huesos
que no habrá paraíso ni amores deshojados;
saben que van al cieno de números y leyes,
a los juegos sin arte, a sudores sin fruto.

La luz es sepultada por cadenas y ruidos
em impúdico reto de ciência sin raíces.
Por los Barrios hay gentes que vacilan insomnes
como recién salidas de um naufragio de sangre.

Central Park - New York
(Leonid Afremov: artista israelense)

Aurora

A aurora de New York tem
quatro colunas de lodo
e um furacão de pombas
que explode as águas podres

A aurora de New York geme
nas vastas escadarias
a buscar entre as arestas
angústias indefinidas

A aurora chega e ninguém
em sua boca a recebe
porque ali a esperança
nem a manhã são possíveis
e as moedas como enxames
devoram recém-nascidos

Os que primeiro se erguem
em seus ossos adivinham:
não haverá paraíso
nem amores desfolhados
só números, leis e o lodo
de tanto esforço baldado

A barulheira das ruas
sepulta a luz na cidade
E as pessoas pelos bairros
vão cambaleando insones
como se houvessem saído
de um naufrágio de sangue


Fonte: https://blogdocastorp.blogspot.com/2017/07/federico-garcia-lorca-aurora.html

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