Nao há melhor síntese
«Aproximam-se
agora um homem que deixou a mão esquerda na guerra e uma mulher que
veio ao mundo com o misterioso poder de ver o que há por trás da pele
das pessoas. Ele chama-se Baltasar Mateus e tem a alcunha de Sete-Sóis, a
ela conhecem-na pelo nome de Blimunda, e também pelo apodo de Sete-Luas
que lhe foi acrescentado depois, porque está escrito que onde haja um
sol terá de haver uma lua, e que só a presença conjunta e harmoniosa de
um e do outro tornará habitável, pelo amor, a terra. Aproxima-se também
um padre jesuíta chamado Bartolomeu que inventou uma máquina capaz de
subir ao céu e voar sem outro combustível que não seja a vontade humana,
essa que, segundo se vem dizendo, tudo pode, mas que não pôde, ou não
soube, ou não quis, até hoje, ser o sol e a lua da simples bondade ou do
ainda mais simples respeito. São três loucos portugueses do século
XVIII, num tempo e num país onde floresceram as superstições e as
fogueiras da Inquisição, onde a vaidade e a megalomania de um rei
fizeram erguer um convento, um palácio e uma basílica que haveriam de
assombrar o mundo exterior, no caso pouco provável de esse mundo ter
olhos bastantes para ver Portugal, tal como sabemos que os tinha
Blimunda para ver o que escondido estava... E também se aproxima uma
multidão de milhares e milhares de homens com as mãos sujas e calosas,
com o corpo exausto de haver levantado, durante anos a fio, pedra a
pedra, os muros implacáveis do convento, as salas enormes do palácio, as
colunas e as pilastras, as aéreas torres sineiras, a cúpula da basílica
suspensa sobre o vazio. Os sons que estamos a ouvir são do cravo de
Domenico Scarlatti, que não sabe se deve rir ou chorar... Esta é a
história de Memorial do Convento, um livro em que o aprendiz de autor,
graças ao que lhe vinha sendo ensinado desde o antigo tempo dos seus
avós Jerónimo e Josefa, já conseguiu escrever palavras como estas, donde
não está ausente alguma poesia: "Além da conversa das mulheres, são os
sonhos que seguram o mundo na sua órbita. Mas são também os sonhos que
lhe fazem um coroa de luas, por isso o céu é o resplendor que há dentro
da cabeça dos homens, se não é a cabeça dos homens o próprio e único
céu". Que assim seja.»
José Saramago, Dircurso do Nobel, 1998
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