Como complemento da aula de preparação para exame de hoje, ficam as fotografias de que falámos e um texto da
socióloga Mª Filomena Mónica que aborda todas as questões que vimos
sobre a Lisboa do tempo do poeta.
- É útil ler e tomar notas de tópicos que escaparam e/ou de informação suplementar, que ajude a compreender os poemas.
No
princípio de Julho, começara a debandada dos ricos; ficar em Lisboa era o
cúmulo da ignomínia social. Centenas de poemas e folhetins pequeno-burgueses
denunciam a miséria, atacam os ricos e troçam dos padres: a 19, às cinco horas
da manhã, com os pulmões destruídos pela tuberculose, morreu Cesário Verde.
Tinha 31 anos e vira o fim chegar “como um medonho muro”.
Em
1886, Portugal era um país predominantemente rural. Fora de Lisboa e do Porto,
não havia verdadeiramente cidades. A maior parte da população – 8 em cada 10
portugueses – vivia no campo, trabalhando uma terra pouco fértil mal
distribuída. A norte do Mondego predominava a pequena propriedade, cultivada
por camponeses e rendeiros pobres; a sul, o latifúndio. Ao contrário do que
sucedia nalguns países europeus, a maioria dos senhores residia nas cidades,
administrando as suas terras por intermédio de feitores; só um punhado de
proprietários rurais se interessava o suficiente pelas suas explorações para aí
tentar introduzir as inovações que sabia estarem a ser utilizadas no
estrangeiro. Mas, num país que dispunha de uma mão-de-obra barata inesgotável,
como Portugal, a mecanização raramente foi um êxito. Apesar de, em 1843, na
Granja Real de Mafra, terem sido exibidas várias máquinas agrícolas, quarenta
anos mais tarde o seu número era extremamente reduzido. Dos três produtos
cultivados em grande escala, o trigo, a vinha e o arroz, só com o primeiro era
possível utilizá-las. Assim, a maioria dos trabalhos agrícolas continuou a ser
feita por trabalhadores rurais, camponeses ou assalariados, com os métodos que
os seus pais e avós usavam há séculos.
No
litoral, as fábricas produziam alguns bens de consumo simples, tecidos, pás e
enxadas, tabaco, papel e rolhas. Apenas se exportavam conservas de peixe e
cortiça.
Entre
1850 e 1880, a indústria crescera vagarosamente, mas crescera: em 1850, o total
de cavalos-vapor existentes era de 938; em 1880 subira para 7000. No têxtil,
cortiças e tabacos, existiam agora fábricas com mais de 500 operários.
Infelizmente, Portugal estava suficientemente perto da Europa para que os
progressos destes países ensombrecessem o que aqui se passava. Em 1881, um
membro da comissão do Inquérito Industrial que o Governo mandou efetuar
escrevia desencantadamente: “Levam-nos um grande avanço as nações industriais,
tocaram quase a meta, quando nós principiámos ainda a caminhar”, e acrescentava
“Esforços e energias de que valem, se os passos que nós damos para diante são
sempre fartamente compensados por outros mais largos e mais rápidos que eles
dão no mesmo sentido?”. (...)
Na
indústria também havia problemas: o mercado interno estava a ser invadido por
produtos estrangeiros que aqui chegavam a preços baixíssimos. Os velhos pólos
artesanais estagnavam. Mesmo as fábricas urbanas se sentiam ameaçadas.
Serralheiros e tecelões, caldeireiros e marceneiros apelam ao Governo para que
faça qualquer coisa por eles, nomeadamente que dificulte a importação dos
produtos estrangeiros; mas ainda teriam de aguardar alguns anos, antes que uma
resolução fosse tomada. (…)
Em
1886, Lisboa era uma cidade muito diferente do que tinha sido trinta anos
antes. A sua população, trezentos mil habitantes, tinha dobrado. Do campo,
haviam chegado milhares, os homens primeiro, para trabalhar como estivadores ou
pedreiros, a família depois. Em parte devido à pressão dos recém-chegados, em
parte porque o alargamento dos limites urbanos era uma forma de obter novas
receitas para o Estado, a cidade alastrava. Ao lado de uma indústria
incipiente, visível sobretudo para os lados de Xabregas e Alcântara, a cintura
saloia espraiava-se por todo o lado, Mafra, Benfica, Lumiar.
Os
laços ao campo permaneciam fortes. A infância rural deixava saudades que não
desapareciam facilmente. Com os seus espaços apertados e o tempo normalizado, a
cidade parecia asfixiante aos novos habitantes. Não surpreende pois que, nos
quentes dias de Verão, o povo deixasse a capital, com cestos repletos de
talhadas de melão, damascos e pão-de-ló, a caminho das hortas. Para os que
ficavam, havia os bailes “campestres” sob as parreirinhas dos cafés e das
sociedades recreativas, além da música ao ar livre nos coretos pintados de
fresco. (…)
Em
1886, já tinham sido introduzidas em Lisboa algumas das inovações que
facilitavam a vida urbana: em 1848, tinham aparecido os primeiros candeeiros a
gás e, em 1878, haviam sido instalados, no Chiado, seis candeeiros elétricos.
Não se pense contudo que esses melhoramentos se propagaram rapidamente. Grande
parte das ruas da cidade era de terra, mal cheirosas e escuras. A muitas das
suas vielas e escadinhas, a civilização não chegara. A 18 de Julho, um grupo de
habitantes de Alfama pedia insistentemente à Câmara de Lisboa que mandasse
regar as ruas do bairro, pois o vento estava a levantar enormes ondas de
poeira, que invadiam casas e lojas.
Nos
bairros antigos, a higiene era deplorável. Com traseiras, pátios e quintais
apinhados de galinhas, coelhos e porcos, as casas estavam infestadas de
parasitas. Apesar de a recente captação do rio Alviela ter permitido instalar
uma rede de distribuição de água ao domicílio, o benefício chegava a poucas
casas. Nos mercados, as condições sanitárias eram péssimas, fazendo com que
muitos dos géneros consumidos pelas classes populares estivessem estragados. Os
fiscais tentavam pôr cobro à situação, mas não chegavam para as encomendas. No
mercado central, a 17 de Julho, tinham sido inutilizadas, como impróprias para
consumo, 81 pescadas, 76 peixes-espadas e 1200 carapaus: era uma gota no
oceano.
Com
os seus pregões e cheiros, gritos e correrias, a vida nestes bairros era
animada. Até certo ponto, o bairro reproduzia a aldeia originária, com as suas
redes de lealdades e rivalidades. Muita gente nascia e morria ali, sem ter
saído dos seus limites estreitos: era ali que trabalhava, namorava e se
zangava. Como em todos os universos fechados, as brigas eram frequentes,
assumindo por vezes um carácter violento. (…)
Cidade
portuária, a zona ribeirinha era uma das mais ativas de Lisboa. Pelas docas de
Alcântara, lhe chegava o carvão que consumia nas suas fábricas; pela de Santos,
as mercadorias coloniais; pela do Cais do Sodré, os melões e o vinho de
Almeirim, o trigo do Alentejo, as melancias de Setúbal, o peixe que abastecia a
cidade. Fragateiros, varinas e descarregadores povoavam este cenário luminoso e
febril. Todos os dias atracavam grandes transatlânticos, despejando
mercadorias. (…)
Os
contrastes entre ricos e pobres eram enormes. É verdade que os milionários
portugueses eram patéticos quando comparados com os seus parceiros europeus,
mas em face da miséria indígena qualquer ser com o mínimo de sensibilidade se
chocaria. No centro da cidade, entre portais e vãos de escada, amontoavam-se
cegos, estropiados, crianças abandonadas e velhos paralíticos. Para muitos, os
pobres faziam parte da ordem do Universo e a injustiça social de que eram
vítimas era tão natural como o facto de um sobreiro não ter nascido um
pinheiro, como mais tarde escreveria Fernando Pessoa. Os miseráveis eram objetos
que Deus colocara no caminho dos ricos para que estes pudessem exercer a
caridade, nas festas e nos bazares variados, como o que, na véspera, tivera
lugar no passeio da Estrela, durante o qual as senhoras da Lapa leiloaram entre
si os despojos oferecidos.
Mas
não havia caridade que bastasse para este caudal imenso de costureiras pálidas
e tísicas, artesãos desempregados de olhar rebelde, vendedeiras esmagadas pelo
peso da carga, velhas abandonadas que falavam sozinhas, coxos, cegos e manetas.
Nesse Verão de 1886, os albergues noturnos abarrotavam de gente suja e
esfarrapada que, aos milhares, ali ia em busca de uma sopa e de uma enxerga. (…)
Os
trabalhadores ganhavam salários irrisórios e estavam sempre à beira do
desemprego. Alimentavam-se, ano após ano, a pão, sopa e batatas, uma ementa
insuficiente que ajuda a explicar as altíssimas taxas de mortalidade de Lisboa
e do Porto. As doenças que mais mortes causavam eram a tuberculose pulmonar e
as pneumonias. Havia quem não aguentasse esperar: Luísa, criada de servir,
atirava-se, na tarde de 18 de Julho, de um terceiro andar na Rua do Oiro para a
rua após ter sido despedida; o cozinheiro Cândido da Silva lançava-se ao Tejo.
As
condições de trabalho eram atrozes: a duração do dia de trabalho era
longuíssima e a segurança nas oficinas inexistente. Todos os dias se
verificavam acidentes: fiandeiras que ficavam sem dedos, pedreiros que caíam de
andaimes, vidreiros que arruinavam os pulmões, mineiros que ficavam soterrados.
A 18 de Julho, quando trabalhava na construção de uma linha de
caminho-de-ferro, Sebastião Pereira, de 30 anos, fora subitamente esmagado por
um penedo que se soltara, enquanto Manuel do Ó caía de uma tábua durante um
descarregamento no cais. Perante este espetáculo, até os mais acérrimos
defensores do liberalismo foram forçados a vergar. A ideia de que o Estado
tinha de intervir para proteger os mais fracos foi-se espalhando.
O
nível cultural da população era baixíssimo: oito em cada dez portugueses não
sabia ler nem escrever, situação que na Europa só encontrava paralelo nos mais
remotos cantos do Império Austro-Húngaro. Apesar da retórica, o regime não
tinha sido capaz de melhorar a instrução do povo. Apenas em Lisboa e no Porto
se tinham verificado alguns progressos, mas mesmo esses eram ridículos.(...)
No
princípio de Julho começara a debandada dos ricos: ficar em Lisboa era o cúmulo
da ignomínia social. Os mais invejados eram os que partiam para o estrangeiro.
A 18 de Julho, o movimento dos carros de aluguer era intenso nas estações de
caminho-de-ferro, levando e trazendo os que chegavam, de “Madrid, Paris,
Berlim, S. Petersburgo, o mundo!”. (…)
Os
pequeno-burgueses ficavam-se por Linda-a-Pastora, Belas ou Caneças, sítios
aprazíveis, de belas quintas muradas e aldeias lavadas, com bons ares, boa luz,
bons alimentos. Quem não alugaria a casa que a 18 de Julho o Diário Popular
anunciava: “Aluga-se fora de portas, mas próximo de Arroios, sítio saudável,
tem água da Companhia, excelente escada, 9 compartimentos, muito limpos e
espaçosos, incluindo despensa e quarto para criado, passam-lhe à porta de 1/2
em 1/2 hora carros Riped e outros. Renda até ao fim do ano: 50.000$00″?
Entalados
entre os ricos e os pobres, estes pequeno-burgueses dividiam-se nos seus
hábitos, comportamentos políticos e cultura. Os mais ambiciosos tentavam imitar
o estilo de vida aristocrático, enquanto as camadas inferiores, que não podiam
acalentar tais ambições, se consumiam num ressentimento social que aumentava
com a crise económica e com a prolongada marginalização. Em 1886, muitos
estavam já descrentes de que o regime monárquico Ihes desse o que pretendiam:
consideração social e participação política. Alguns começaram a aderir ao
movimento republicano que exprimia maravilhosamente o seu ódio aos privilégios
sociais.
Os
jornais populares espelham a sua visão do mundo. O contraste entre a vida dos
ricos e dos pobres é celebrado até à exaustão: de um lado, a família burguesa,
envolta em seda e arminhos; do outro, a pobre, tiritando de frio e fome.
Centenas de poemas e folhetins pequeno-burgueses denunciam a miséria, atacam os
ricos e troçam dos padres: é o grande fresco dos humilhados e ofendidos, a
retórica lacrimejante tão apreciada em reuniões populares. Os títulos destes
poemas, “Contrastes”, “A Miséria”, “A Prostituta”, “O Desgraçado”, são indicativos
do conteúdo. Cesário Verde faz parte desta tradição: o que distingue é o génio.
Quem,
a 19 de Julho de 1886, abrisse, de manhã, a janela, perceberia que o dia iria
estar quente. No Norte trovejara, mas nos arrabaldes da capital, entre as
ribeiras e os montes, o clima estava ameno. Nos pomares, cantavam os
pintarroxos, nos prados as vacas leiteiras pastavam pachorrentamente e, entre
pedregulhos luzidios, as mulheres saloias preparavam-se para lavar as últimas
peças de roupa que, no dia seguinte, teriam de entregar nas casas ricas da
capital. Famílias aperaltadas partiam para a missa dominical. O silêncio era
apenas entrecortado pelas chocas da manada e pelos carros de bois que desciam
do outeiro. Foi no meio deste esplendor que, às 5 h da manhã, com os pulmões
destruídos pela tuberculose, “sem querer, aflito e atónito”, morreu José
Joaquim Cesário Verde. Tinha 31 anos e vira chegar o fim “como um medonho
muro”.
Maria Filomena Mónica, in Revista Prelo, nº 12, 1986
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