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01 junho 2011

Cesário Verde - texto de apoio

Lisboa, Mouraria
Lisboa, da Sra. do Monte
Lisboa, Bairro da Graça

Cesário Verde - Entre a cidade e o campo

"Cesário Verde transportou para a poesia a dimensão interior de uma cidade. Tanto é o camponês preso, em liberdade, nela, como também pode ser o citadino, à solta, através do campo.

O poeta de Lisboa foi (e é) Cesário Verde. Mesmo depois de outros que lhe sucederam cabe-lhe, para sempre, esse título. Mas também se encontra repartido pela Grande Lisboa, no concelho de Oeiras, num espaço rural que, na segunda metade do século XX, viria a ser urbanizado

Conhecia Lisboa rua a rua, praça a praça. Até os becos e vielas da cidade marginal. Deu uma interpretação muito própria às casas, às árvores, aos candeeiros de gás, aos transportes públicos e privados, ao vestuário e à moda. O imaginário dos velhos bairros, mas também do Chiado, do Rossio, da baixa pombalina, onde nasceu, foi perpetuado nos seus versos. Não ignorou figuras da população nos

ofícios e locais de trabalho: os empregados do comércio, os dentistas, os cauteleiros, os calafates, os operários da construção civil, os guardas-noturnos, as varinas. Tinha o gosto do pormenor aprofundando as emoções vividas com os cinco sentidos.

Captou a luz e a cor, o perfil de cada bairro, a geografia e a essência de Lisboa. Reteve a atmosfera das casas envolvidas pelo rosa-velho, o ocre, o azul, o branco e o verde-garrafa. E quantos outros matizes, entre o pérola e cinza, a patine dos velhos palácios que o tempo e a chuva tornam mais surpreendentes. Não faltam os reflexos do sol que «espalham nas frontarias seus gomos de laranja destilada», nem as margens do Tejo, junto às fragatas, cacilheiros e outros barcos, atracados de Alcântara até ao Poço do Bispo e onde «reluz viscoso o rio.» Nem, ainda, o deslumbramento das manhãs claras, a serenidade das tardes repousadas, os dias arrepiados e foscos que uma névoa espessa transfigura. (…)

Poeta do quotidiano, no seu pequeno-grande livroestamos perante o homem com os seus humores, os seus caprichos, o seu modo de ser e de ver e, por outro lado, a realidade colectiva que mergulha numa herança com raízes profundas no tempo e na História. Transmite-nos os sonhos e pesadelos de uma sensibilidade insatisfeita na procura da beleza e, também, angustiado com problemas sociais e políticos, tudo quanto percorreu, uma cidade e um país, em crise de transição e a querer romper com o marasmo e a rotina.

A cidade e o campo representam os dois pólos da sua fixação. (…)

Há ocasiões (…) que detesta Lisboa, que lhe parece «um foco de madracice e asneiras». Refugia-se na quinta de São Domingos. Ainda nesse poema, sob o signo de Março, festeja o início da Primavera: «Como amanhece! Que meigas / As horas antes do almoço! /Fartam-se as vacas nas veigas / e um pasto orvalhado e moço / produz as novas manteigas.»

A actividade agrícola absorve-o, enquanto exalta o sortilégio da natureza em Linda-a-Pastora: «Toda a paisagem se doura; / Tímida, ainda, que fresca! / Bela mulher, sim senhora, / Nesta manhã pitoresca, / Primaveril, criadora!» Mas, a certa altura, a monotonia de Linda-a-Pastora torna-se-lhe insuportável. Regressa a Lisboa, mas quando a cidade de novo o satura, apetece-lhe

Paris. Realiza o sonho, mas Paris rapidamente o fatiga. Dali a pouco, em Lisboa, já recorda com prazer o tempo que passou com os amigos. O cair da noite enerva-o, perturba-o: «as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia, despertam um desejo absurdo de sofrer.» Cesário Verde transportou para a poesia a dimensão interior de uma cidade percorrida por todos nós sem, muitas vezes, conseguirmos descobrir as singularidades que lhe acentuam o carácter.

Cesário Verde tanto é o camponês preso, em liberdade, na cidade, de que falará Alberto Caeiro, como também pode ser o citadino, à solta, através do campo. Todavia, não abdica do «ideal de luxo» nem do «espírito cosmopolita» com o fascínio das grandes capitais do mundo e a sedução permanente de Lisboa."


António Valdemar, *Jornalista, investigador


Fotografias - Noémia Santos, 2011

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