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12 junho 2024

Alberto Caeiro e Cesário Verde


"Com quem se pode comparar Caeiro? Com pouquíssimos poetas. Não, diga-se desde já, com Cesário Verde, a quem ele se refere como se a um antepassado literário, embora uma espécie de antepassado degenerado antecipadamente. Cesário Verde exerceu sobre Caeiro o género de influência a que se pode chamar apenas provocadora da inspiração, sem transmitir qualquer espécie de inspiração.[...]
 
A própria ternura das coisas como simples coisas, que caracteriza o tipo do homem que supomos (propomos) não caracteriza Caeiro. [...] Entregue a si próprio, não tem qualquer ternura pelas coisas, mal tem qualquer ternura, até, pelas suas sensações. Aqui tocamos a sua grande originalidade, a sua objectividade quase inconcebível. Vê as coisas apenas com os olhos, não com a mente. Quando olha para uma flor, não permite que isso provoque quaisquer pensamentos. Longe de ver sermões nas pedras, nem sequer se permite conceber uma pedra como ponto de partida para um sermão. O único sermão que uma pedra encerra é, para ele, o facto de existir. A única coisa que uma pedra lhe diz é que nada tem para lhe dizer. Pode-se conceber um estado de espírito parecido com este, mas não pode conceber-se num poeta. Esta maneira de olhar para uma pedra pode ser definida como a maneira totalmente não-poética de a olhar.[...]

Diz-se que Alberto Caeiro deplorou o nome de «sensacionismo» que um discípulo seu — é certo que um discípulo um tanto estranho: o Sr. Álvaro de Campos — atribuiu à sua atitude e à atitude que criou. Se Caeiro protestou contra esta palavra por possivelmente parecer designar uma «escola», como o Futurismo, por exemplo, tinha razão[...]."
Fernando Pessoa, Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação
 
Cristalizações (excerto)

Eu  julgo-me no Norte, ao frio — o grande agente! —
Carros de mão, que chiam carregados,
Conduzem saibro, vagarosamente;
Vê-se a cidade, mercantil, contente:
Madeiras, águas, multidões, telhados!
 
Negrejam os quintais, enxuga a alvenaria;
Em arco, sem as nuvens flutuantes,
O céu renova a tinta corredia;
E os charcos brilham tanto, que eu diria
Ter ante mim lagoas de brilhantes!
 
E engelhem, muito embora, os fracos, os tolhidos,
Eu tudo encontro alegremente exacto.
Lavo, refresco, limpo os meus sentidos.
E tangem-me, excitados, sacudidos,
O tacto, a vista, o ouvido, o gosto, o olfacto!
 
Pede-me o corpo inteiro esforços na friagem
De tão lavada e igual temperatura!
Os ares, o caminho, a luz reagem;
Cheira-me a fogo, a sílex, a ferragem;
Sabe-me a campo, a lenha, a agricultura.

Cesário Verde 

Nós (excerto)
II
Que de fruta! E que fresca e temporã,
Nas duas boas quintas bem muradas,
Em que o Sol, nos talhões e nas latadas,
Bate de chapa, logo de manhã!

O laranjal de folhas negrejantes,
(Porque os terrenos são resvaladiços)
Desce em socalcos todos os maciços,
Como uma escadaria de gigantes.

Das courelas, que criam cereais,
De que os donos - ainda! - pagam foros,
Dividem-no fechados pitosporos,
Abrigos de raízes verticais.

Ao meio, a casaria branca assenta
À beira da calçada, que divide
Os escuros pomares de pevide,
Da vinha, numa encosta soalhenta!

Entretanto, não há maior prazer
Do que, na placidez das duas horas,
Ouvir e ver, entre o chiar das noras,
No largo tanque as bicas a correr!
(,,,)
Cesário Verde
(excerto do poema "Nós", disponível na Biblioteca Virtual de Literatura)

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