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10 dezembro 2020

Alberto Caeiro e a Natureza

Ficam alguns versos, não presentes no Manual, mas muito relevantes para perceber a poesia de Alberto Caeiro. Destaca-se, em cada poema, o conjunto de versos mais fortes e fáceis de lembrar.
 Quinta da Aguieira,.N. Santos
Aceita o universo
Como to deram os deuses.
Se os deuses te quisessem dar outro
Ter-to-iam dado.
Se há outras matérias e outros mundos Haja.
 In Poemas Inconjuntos

 III 
Ao entardecer, debruçado pela janela,
E sabendo de soslaio que há campos em frente,
Leio até me arderem os olhos
O livro de Cesário Verde
.
 

Que pena que tenho dele! Ele era um camponês
Que andava preso em liberdade pela cidade.

Mas o modo como olhava para as casas,
E o modo como reparava nas ruas,
E a maneira como dava pelas pessoas,
É o de quem olha para árvores
,
E de quem desce os olhos pela estrada por onde vai andando
E anda a reparar nas flores que há pelos campos…

Por isso ele tinha aquela grande tristeza
Que ele nunca disse bem que tinha,
Mas andava na cidade como quem não anda no campo
E triste como esmagar flores em livros
E pôr plantas em jarros…
 


In O Guardador de Rebanhos
 XXXIX 
O mistério das cousas, onde está ele?
Onde está ele que não aparece
Pelo menos a mostrar-nos que é mistério?
Que sabe o rio disso e que sabe a árvore?
E eu, que não sou mais do que eles, que sei disso?
Sempre que olho para as cousas e penso no que os homens pensam delas,
Rio como um regato que soa fresco numa pedra.
 

Porque o único sentido oculto das cousas 
É elas não terem sentido oculto nenhum, 
 
É mais estranho do que todas as estranhezas 
E do que os sonhos de todos os poetas
E os pensamentos de todos os filósofos,
Que as cousas sejam realmente o que parecem ser 
E não haja nada que compreender.

Sim, eis o que os meus sentidos aprenderam sozinhos: —
As cousas não têm significação: têm existência.
As cousas são o único sentido oculto das cousas.

In O Guardador de Rebanhos

Quinta da Aguieira. Noémia Santos
XXIII
O meu olhar azul como o céu 
É calmo como a água ao sol. 
É assim, azul e calmo,
Porque não interroga nem se espanta... 

Se eu interrogasse e me espantasse
Não nasciam flores novas nos prados
Nem mudaria qualquer cousa no sol de modo a ele ficar mais belo... 
(Mesmo se nascessem flores novas no prado
E se o sol mudasse para mais belo, 
Eu sentiria menos flores no prado 
E achava mais feio o sol ...
Porque tudo é como é e assim é que é, 
E eu aceito, e nem agradeço
,
Para não parecer que penso nisso...)

 In O Guardador de Rebanhos
XXXI 
Se às vezes digo que as flores sorriem
E se eu disser que os rios cantam,
Não é porque eu julgue que há sorrisos nas flores
E cantos no correr dos rios...
É porque assim faço mais sentir aos homens falsos
A existência verdadeiramente real das flores e dos rios.
Porque escrevo para eles me lerem sacrifico-me às vezes 
À sua estupidez de sentidos...
Não concordo comigo mas absolvo-me,
Porque não me aceito a sério
Porque só sou essa cousa odiosa, um intérprete da Natureza,
Porque há homens que não percebem a sua linguagem,
Por ela não ser linguagem nenhuma...

XXXVIII
Bendito seja o mesmo sol de outras terras
Que faz meus irmãos todos os homens

Porque todos os homens, um momento no dia, o olham como eu, 
E, nesse puro momento
Todo limpo e sensível
Regressam lacrimosamente
E com um suspiro que mal sentem
Ao homem verdadeiro e primitivo
Que via o Sol nascer e ainda o não adorava.
Porque isso é natural — mais natural
Que adorar o ouro e Deus
E depois tudo o mais que não há.

Alberto Caeiro
in O Guardador de Rebanhos
 Quinta da Aguieira. Noémia Santos

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