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30 janeiro 2014

Religião como redenção?

A partir da interessante questão levantada por alguns de vós sobre o papel da Religião, deixo informação adicional.
"A fé católica e os seus princípios morais regem as consciências e a actuação das personagens centrais do drama, família “honesta e temente a Deus” (Memória). (...)"
 
    



"Nesta abordagem, enumeremos três ideias. A primeira diz respeito à angustiante consciência do pecado, manifestada desde a cena inaugural. Atormentada pelos fantasmas do passado e pela sua consciência, D. Madalena vive em constante e profunda ansiedade. Não só teme dolorosamente o regresso do seu primeiro marido, como se sente uma mulher angustiada por ter amado ilicitamente o homem que viria a ser o seu segundo esposo, estando ainda casada com o primeiro (consciência de adultério em pensamento). Depois do expressivo monólogo inicial, é o velho e ciumento escudeiro que a atormenta, quer quando conversa com Maria sobre o passado e a esperança sebastianista, quer quando afronta a sua ama, ousando dizer-lhe que Maria era digna “De nascer em melhor estado” (I, 2). Mais tarde, é a própria D. Madalena que, justamente na cena anterior à aparição do Romeiro, confessa ao cunhado Frei Jorge a razão da sua infelicidade, partilhando assim o conflito interior em que se debate, e que a sua consciência cristã se lhe encarrega de lembrar[1].
     Dentro da mesma mundividência religiosa, a segunda ideia é a da desafiadora revolta protagonizada pela jovem Maria de Noronha nos instantes que precedem a sua morte por tuberculose. Ela irrompe pela Igreja de S. Paulo, em plena celebração, quando os seus pais se preparam para ingressar na vida conventual. Não a prepararam para tão duro golpe, nem lhe perguntaram a sua opinião. Apenas a confrontaram com aquele violento abandono, quando já se ouve o som do órgão e os frades de S. Domingos vão entoando os salmos penitenciais. Totalmente desvairada, ela interrompendo a “santa cerimónia”. Tenta demover os pais de tão inumana resolução, quando eles iam morrendo para o mundo, abandonando o seu antigo estado e abraçando a mortalha da vida religiosa e os novos nomes (Frei Luís de Sousa e Sóror Madalena): “Esperai: aqui não morre ninguém sem mim. Que quereis fazer? Que cerimónias são estas?” (III, 11).
     É neste contexto que, perante a inabalável resolução dos seus pais, surge a dolorosa invectiva de Maria de Noronha, num longo e patético monólogo, contra a falta de humanidade de um Deus justiceiro e vingador, que assim lhe rouba os seus legítimos pais: “Que Deus é esse que está nesse altar e quer roubar o pai e a mãe a sua filha? (Para os circunstantes.) Vós quem sois, espectros fatais?... Quereis-mos tirar dos meus braços? Esta é a minha mãe, este é o meu pai. Que me importa a mim com o outro?” (III, 11). O dramaturgo suscita assim a piedade para a única vítima inocente. As razões e os valores religiosos, sobretudo a indissolubilidade do casamento (ordem divina), vencem crua e desumanamente as razões do coração e o fruto de uma união apaixonada (plano humano). 
     Por último, cabe mencionar a resolução do casal (solução religiosa), tomada decididamente por Manuel de Sousa e aceite por D. Madalena. Acolhendo resignadamente os insondáveis desígnios de Deus, os dois decidem entregar-se à sua omnipotente e divina Providência. Recordando à esposa o caso dos condes de Vimioso, o marido é levado a reconhecer que a única solução (romântica) do drama familiar em que se vê mergulhado com a sua esposa reside na “sepultura de um claustro”[2].
 



O mesmo sentimento de aguda revolta de Maria fora momentaneamente partilhado pelo seu pai. Com efeito, no início do derradeiro Acto, aparece-nos um Manuel de Sousa profundamente transtornado pela dor, invocando Deus na sua desgraça, dominado apenas por um doloroso sentimento: a perdição de sua filha no “abismo da vergonha”, vítima inocente do drama familiar. Recebe, então, os conselhos de resignação e acatamento dos desígnios da divina Providência, por parte do irmão, Frei Jorge, que lhe recomenda o abandono do mundo: “E Deus há-de levar em conta essas amarguras. Já que te não pode apartar o cálix dos beiços, o que tu padeces há-de ser descontado nela, há-de resgatar a culpa”. Deus velaria paternalmente pelo seu pobre anjo: “Deus, Deus será o pai de tua filha” (III, 1). Fora, aliás, a própria mãe, momentos antes da cerimónia religiosa, que a oferecera a Deus como uma espécie de cordeiro imolado para expiar o seu próprio pecado
[3]. A filha desonrada e perdida tinha sido também o motivo da explosão de dor perante a anagnórisis incompleta (II, 13)[4].
     Depois da interrupção da cerimónia religiosa por Maria, a peça termina justamente com um sentimento misto de resignação e esperança cristãs: ser transitório, o homo viator confia plenamente a sua existência na misericordiosa mão de Deus. Todos rezam pela alma daquele anjo inocente que acaba de falecer, comungando do sentimento expresso pelo celebrante dominicano: “Meus irmãos, Deus aflige neste mundo àqueles que ama. A coroa de glória não se dá senão no Céu” (III, 12). Ao pecado do adultério de pensamento e à ilicitude da relação matrimonial, impõe-se a solução religiosa, como forma de repor a desejada ordem moral – ao crime sucede a expiação, através da Cruz redentora. "



[1] Relembremos a confissão sentimental desta mulher, heroína mais romântica que seiscentista: “Este amor, que hoje está santificado e bendito no Céu, porque Manuel de Sousa é meu marido, começou com um crime, porque eu amei-o assim que o vi... e quando o vi, hoje, hoje... foi em tal dia como hoje! – D. João de Portugal ainda era vivo. O pecado estava-me no coração: a boca não o disse... os olhos não sei o que fizeram, mas dentro da alma eu já não tinha outra imagem senão a do amante... já não guardava a meu marido, a meu bom... a meu generoso marido... senão a grosseira fidelidade que uma mulher bem nascida quase que mais deve a si do que ao esposo. Permitiu Deus... quem sabe se para me tentar?... que naquela funesta batalha de Alcácer, entre tantos, ficasse também D. João.” (III, 10).

[2] “Madalena senhora! Todas estas coisas são já indignas de nós. Até ontem, a nossa desculpa, para com Deus e para com os homens, estava na boa fé e seguridade de nossas consciências. Essa acabou. Para nós já não há senão estas mortalhas (Tomando os hábitos de cima do banco.) e a sepultura de um claustro. A resolução que tomámos é a única possível, e já não há que voltar atrás. Ainda ontem falávamos dos condes de Vimioso... Quem nos diria... oh! incompreensíveis mistérios de Deus!... Ânimo, e ponhamos os olhos naquela cruz!” (III, 8).

[3] “(Indo abraçar-se com a cruz.) – Oh! Deus: Senhor meu! pois já, já? Nem mais um instante, meu Deus? Cruz do meu Redentor, é cruz preciosa, refúgio de infelizes, ampara-me tu, que me abandonaram todos neste mundo, e já não posso com as minhas desgraças... e estou feita um espectáculo de dor e de espanto para o Céu e para e a terra! Tomai, Senhor, tomai tudo... A minha filha também?... Oh! a minha filha, a minha filha... também essa Vos dou, meu Deus. E agora, que mais quereis de mim, Senhor? (Toca o órgão outra vez.)” (III, 9).
[4] O drama íntimo de Manuel de Sousa, depois transformado em Frei Luís de Sousa, volta a inspirar outros autores, como Eugénio de Castro, em “A Fonte do Sátiro”, texto integrado nas Obras Poéticas, vol. II, Lisboa, Lumen, 1930, pp. 171-178. Aí nos descreve o atormentado dominicano que, já na sua velhice, é perseguido por visões concupiscentes: “Só o ligeiro Amor não se faz velho,/ Do berço à tumba dominando o homem!” (p. 178). A antiga e recalcada paixão por D. Madalena irrompe num momento de devaneio, através do diálogo com a figura de um Sátiro pagão – “visão impura” que recorda o famigerado e baudelariano poema “Morte do Santo” de Carlos Fradique Mendes. A violência da separação explica que Soror Madalena também acalente “Doces Lembranças duma vida bela/ Com as queixas da sua viuvez!” (p. 177).
  

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