A partir da interessante questão levantada por alguns de vós sobre o papel da Religião, deixo informação adicional.
"A
fé católica e os seus princípios morais regem as consciências e a actuação das
personagens centrais do drama, família “honesta e temente a Deus” (Memória).
(...)"
"Nesta abordagem, enumeremos três ideias. A primeira diz respeito à angustiante consciência do pecado, manifestada desde a cena inaugural. Atormentada pelos fantasmas do passado e pela sua consciência, D. Madalena vive em constante e profunda ansiedade. Não só teme dolorosamente o regresso do seu primeiro marido, como se sente uma mulher angustiada por ter amado ilicitamente o homem que viria a ser o seu segundo esposo, estando ainda casada com o primeiro (consciência de adultério em pensamento). Depois do expressivo monólogo inicial, é o velho e ciumento escudeiro que a atormenta, quer quando conversa com Maria sobre o passado e a esperança sebastianista, quer quando afronta a sua ama, ousando dizer-lhe que Maria era digna “De nascer em melhor estado” (I, 2). Mais tarde, é a própria D. Madalena que, justamente na cena anterior à aparição do Romeiro, confessa ao cunhado Frei Jorge a razão da sua infelicidade, partilhando assim o conflito interior em que se debate, e que a sua consciência cristã se lhe encarrega de lembrar[1].
Dentro da mesma
mundividência religiosa, a segunda ideia é a da desafiadora revolta
protagonizada pela jovem Maria de Noronha nos instantes que precedem a sua
morte por tuberculose. Ela irrompe pela Igreja de S. Paulo, em plena
celebração, quando os seus pais se preparam para ingressar na vida conventual.
Não a prepararam para tão duro golpe, nem lhe perguntaram a sua opinião. Apenas
a confrontaram com aquele violento abandono, quando já se ouve o som do órgão e
os frades de S. Domingos vão entoando os salmos penitenciais. Totalmente
desvairada, ela interrompendo a “santa cerimónia”. Tenta demover os pais de tão
inumana resolução, quando eles iam morrendo para o mundo, abandonando o seu
antigo estado e abraçando a mortalha da vida religiosa e os novos nomes (Frei
Luís de Sousa e Sóror Madalena): “Esperai: aqui não morre ninguém sem mim. Que
quereis fazer? Que cerimónias são estas?” (III, 11).
É neste contexto
que, perante a inabalável resolução dos seus pais, surge a dolorosa invectiva
de Maria de Noronha, num longo e patético monólogo, contra a falta de
humanidade de um Deus justiceiro e vingador, que assim lhe rouba os seus
legítimos pais: “Que Deus é esse que está nesse altar e quer roubar o pai e a
mãe a sua filha? (Para os circunstantes.) Vós quem sois, espectros
fatais?... Quereis-mos tirar dos meus braços? Esta é a minha mãe, este é o meu
pai. Que me importa a mim com o outro?” (III, 11). O dramaturgo suscita assim a
piedade para a única vítima inocente. As razões e os valores religiosos,
sobretudo a indissolubilidade do casamento (ordem divina), vencem crua e
desumanamente as razões do coração e o fruto de uma união apaixonada (plano
humano).
Por último, cabe
mencionar a resolução do casal (solução religiosa), tomada decididamente
por Manuel de Sousa e aceite por D. Madalena. Acolhendo resignadamente os
insondáveis desígnios de Deus, os dois decidem entregar-se à sua omnipotente e
divina Providência. Recordando à esposa o caso dos condes de Vimioso, o marido
é levado a reconhecer que a única solução (romântica) do drama familiar em que
se vê mergulhado com a sua esposa reside na “sepultura de um claustro”[2].
O mesmo sentimento de aguda revolta de Maria fora momentaneamente partilhado pelo seu pai. Com efeito, no início do derradeiro Acto, aparece-nos um Manuel de Sousa profundamente transtornado pela dor, invocando Deus na sua desgraça, dominado apenas por um doloroso sentimento: a perdição de sua filha no “abismo da vergonha”, vítima inocente do drama familiar. Recebe, então, os conselhos de resignação e acatamento dos desígnios da divina Providência, por parte do irmão, Frei Jorge, que lhe recomenda o abandono do mundo: “E Deus há-de levar em conta essas amarguras. Já que te não pode apartar o cálix dos beiços, o que tu padeces há-de ser descontado nela, há-de resgatar a culpa”. Deus velaria paternalmente pelo seu pobre anjo: “Deus, Deus será o pai de tua filha” (III, 1). Fora, aliás, a própria mãe, momentos antes da cerimónia religiosa, que a oferecera a Deus como uma espécie de cordeiro imolado para expiar o seu próprio pecado[3]. A filha desonrada e perdida tinha sido também o motivo da explosão de dor perante a anagnórisis incompleta (II, 13)[4].
Depois da interrupção da cerimónia
religiosa por Maria, a peça termina justamente com um sentimento misto de
resignação e esperança cristãs: ser transitório, o homo viator confia
plenamente a sua existência na misericordiosa mão de Deus. Todos rezam pela
alma daquele anjo inocente que acaba de falecer, comungando do
sentimento expresso pelo celebrante dominicano: “Meus irmãos, Deus aflige neste
mundo àqueles que ama. A coroa de glória não se dá senão no Céu” (III, 12). Ao
pecado do adultério de pensamento e à ilicitude da relação matrimonial,
impõe-se a solução religiosa, como forma de repor a desejada ordem moral – ao crime
sucede a expiação, através da Cruz redentora. "
[1] Relembremos a confissão sentimental desta mulher,
heroína mais romântica que seiscentista: “Este amor, que hoje está santificado
e bendito no Céu, porque Manuel de Sousa é meu marido, começou com um crime,
porque eu amei-o assim que o vi... e quando o vi, hoje, hoje... foi em tal dia
como hoje! – D. João de Portugal ainda era vivo. O pecado estava-me no coração:
a boca não o disse... os olhos não sei o que fizeram, mas dentro da alma eu já
não tinha outra imagem senão a do amante... já não guardava a meu marido, a meu
bom... a meu generoso marido... senão a grosseira fidelidade que uma mulher bem
nascida quase que mais deve a si do que ao esposo. Permitiu Deus... quem sabe
se para me tentar?... que naquela funesta batalha de Alcácer, entre tantos,
ficasse também D. João.” (III, 10).
[2] “Madalena senhora! Todas estas coisas são já indignas
de nós. Até ontem, a nossa desculpa, para com Deus e para com os homens, estava
na boa fé e seguridade de nossas consciências. Essa acabou. Para nós já não há
senão estas mortalhas (Tomando os hábitos de cima do banco.) e a
sepultura de um claustro. A resolução que tomámos é a única possível, e já não
há que voltar atrás. Ainda ontem falávamos dos condes de Vimioso... Quem nos
diria... oh! incompreensíveis mistérios de Deus!... Ânimo, e ponhamos os olhos
naquela cruz!” (III, 8).
[3] “(Indo abraçar-se com a cruz.) – Oh! Deus:
Senhor meu! pois já, já? Nem mais um instante, meu Deus? Cruz do meu Redentor,
é cruz preciosa, refúgio de infelizes, ampara-me tu, que me abandonaram todos
neste mundo, e já não posso com as minhas desgraças... e estou feita um
espectáculo de dor e de espanto para o Céu e para e a terra! Tomai, Senhor,
tomai tudo... A minha filha também?... Oh! a minha filha, a minha filha...
também essa Vos dou, meu Deus. E agora, que mais quereis de mim, Senhor? (Toca
o órgão outra vez.)” (III, 9).
[4] O drama íntimo de Manuel de Sousa, depois
transformado em Frei Luís de Sousa, volta a inspirar outros autores, como
Eugénio de Castro, em “A Fonte do Sátiro”, texto integrado nas Obras
Poéticas, vol. II, Lisboa, Lumen, 1930, pp. 171-178. Aí nos descreve o
atormentado dominicano que, já na sua velhice, é perseguido por visões concupiscentes:
“Só o ligeiro Amor não se faz velho,/ Do berço à tumba dominando o homem!” (p.
178). A antiga e recalcada paixão por D. Madalena irrompe num momento de
devaneio, através do diálogo com a figura de um Sátiro pagão – “visão impura”
que recorda o famigerado e baudelariano poema “Morte do Santo” de Carlos
Fradique Mendes. A violência da separação explica que Soror Madalena também
acalente “Doces Lembranças duma vida bela/ Com as queixas da sua viuvez!” (p.
177).
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