Obrigado ao escritor Rui Cardoso Martins, pela sua entrega e despojamento.
Obrigada a todos vós, que souberam ser leitores e ouvintes à altura.
Como referi, o meu desejo era o de que este encontro fosse para nos ouvirmos uns aos outros. E assim foi. Para grande satisfação minha e, sobretudo, do escritor.
Aguardo as fotos, as cartas e as críticas.
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Como fazer uma crítica de um livro
- Para apoiar a escrita da vossa crítica ao livro que leram, devem primeiramente completar o guião. Depois, leiam os exemplos e/ou consultem algum dos sítios indicados.
O Deus das Moscas*, de William Golding
Tradução de Luís de Sousa Rebelo
Editorial Vega, Lisboa, 1997, 200 pp.
"William Golding (1911-1993), um dos maiores escritores do século, ganhou o prémio Nobel em 1983 e este é um dos seus grandes livros, duas vezes adaptado ao cinema, a última das quais bastante recentemente. Nesta obra Golding conta a história de um grupo de crianças de um colégio inglês que naufraga, dando à costa numa ilha deserta. Contra este pano de fundo mais ou menos idílico, a lembrar obras como "Dois Anos de Férias" de Júlio Verne, Golding vai conduzindo o leitor pelo verdadeiro tema da obra: a maldade e a estupidez humana, a selvajaria brutal que tudo subjuga ao prazer imediato. Quando foi publicado, em 1954, o mundo ocidental acabava de sair dos horrores da segunda guerra mundial; mas hoje a obra continua infelizmente actual porque a estupidez humana é uma das constantes que ao que parece veio infelizmente para ficar.
Do ponto de vista formal, estamos perante uma escrita depurada que parece esconder na sua impassível objectividade narrativa um grito surdo que passa a habitar-nos para sempre. Se há romance contagiante, é este. A sensatez do herói do romance, que procura convencer os seus companheiros a não se deixarem iludir pelos apelos constantes à brutal selvajaria é quase dolorosa. Estamos perante um grande livro, que merece ser lido e discutido e do qual é imperativo extrair uma lição.
Gostava de destacar um aspecto crucial. Na sua tentativa de convencer os seus companheiros a agir de forma sensata e racional, o protagonista vê-se obrigado a instituir rituais — menosprezados e espezinhados por todos. E este é um aspecto que parece captar uma característica importante da natureza humana e que muitas vezes não é suficientemente tida em conta — nomeadamente em discussões relacionadas com a filosofia da religião. Os seres humanos precisam de rituais, de símbolos, de histórias para conseguirem ser sensatos; precisam da iconografia, do gesto ritual, do preceito religioso; e precisam, sobretudo de dramatizar o bem e o mal morais. Essa dramatização culmina, claro, com a invenção dos deuses das várias religiões, guardiães dramáticos da acção moralmente correcta. O problema — problema detectado por Golding e exposto nesta obra — é que a dramatização corre geralmente mal; perde-se o seu sentido; e em seu lugar fica apenas um ritual vazio e uma iconografia despropositada que acaba por ser colocada ao serviço dos mais básicos e selvagens instintos irracionais humanos.
Termino com uma nota de cautela. Este livro não é para espíritos fracos. O seu desenlace trágico, pinta em tons fortes os abismos morais a que a miséria humana pode conduzir. Mas, como grande escritor que é, Golding faz mais do que impressionar o nosso sentido moral: impressiona o nosso sentido estético com um poder tal que o convívio diário com esta obra nos marca para sempre. "
Paul Erdös, O Homem Que Só Gostava de Números, de Paul Hoffman
Tradução de Jaime Ramos
Gradiva, 2000, 282 pp.
"Eis uma leitura apaixonante. Ao contrário do que eu pensava, não se trata exactamente de uma biografia de Paul Erdös, o génio matemático húngaro que trabalhava 19 horas por dia e que demonstrou largas centenas de importantes teoremas matemáticos, sendo autor e co-autor de qualquer coisa como 1475 artigos científicos. É antes uma colecção de memórias, factos e episódios sobre a vida de Erdös. Mas a habilidade narrativa de Hoffman, por um lado, e a vida extraordinária de Erdös, por outro, fazem desta obra uma leitura magnífica.
Erdös vivia para a matemática. Nunca casou. Nunca teve filhos, apesar de adorar crianças, a que ele chamava "épsilos" (o épsilo é usado em matemática para representar quantidades pequenas). Nunca teve relações sexuais. Tinha uma rede de amigos matemáticos espalhados pelo mundo e arrastava consigo uma grande mala, que transportava de conferência para conferência, de universidade em universidade, em redor do mundo, ficando semanas em casa dos amigos e aparecendo sempre sem se fazer anunciar. Trabalhava até à 1 da manhã todos os dias e às 6 da manhã já estava a trabalhar outra vez. Tomava excitantes para poder trabalhar mais e resistir ao sono. E trabalhou até morrer, em 1996, com 83 anos de idade. Calculo que Erdös terá demonstrado mais teoremas sozinho do que todos os matemáticos portugueses juntos de hoje em dia.
Erdös era o protótipo do génio maluco, excepto numa coisa: ao contrário do perfil alemão romântico do génio de mau génio, Erdös era simpático com todos os seus amigos e nunca se esquecia do que para eles era importante. Era especialmente amigo dos filhos dos amigos, que também pareciam gostar muito dele. E era um mãos-largas com o dinheiro, doando-o para que estudantes pobres com talento para a matemática pudessem prosseguir os seus estudos.
Hoffman não se limita a descrever a vida de Erdös; na verdade, o livro acaba por ser uma pequena história de algumas das disciplinas matemáticas cultivadas por Erdös, e uma estimulante introdução informal a algumas dessas áreas. Erdös trabalhava sobretudo na teoria dos números e não noutras áreas da matemática, como a lógica ou a geometria. Ao longo do livro Hoffman apresenta-nos alguns dos problemas e dos resultados mais significativos trabalhados por Erdös e pelos seus colaboradores.
Esta obra tem ainda a enorme vantagem de tornar evidente que a ideia de que os cientistas, os filósofos e os intelectuais em geral não são frios e impessoais é uma trivialidade que só a inanidade das modernas doutrinas pós-modernas pôde erguer ao estatuto de tese filosófica. Mas do facto de os intelectuais serem pessoas profundamente envolvidas emocionalmente na sua actividade não se segue que os resultados a que chegam sejam, eles próprios, meramente subjectivos.
Esta obra de Hoffman, que ganhou em 1999 o prémio Rhône-Poulenc para o melhor livro de ciência, tem feito furor um pouco por todo o mundo, constituindo um dos sucessos de vendas da Amazon. Chegou agora a Portugal pela mão da Gradiva e com tradução de Jaime Ramos. Infelizmente, abundam ainda os anglicismos, alguns bastante disparatados, como a expressão "livro de texto" em vez de "manual", que é a tradução correcta de "textbook", e alguns erros ortográficos irritantes, como o nome de Bertrand Russell que aparece sistematicamente sem o último "l". Este livro e os seus leitores mereciam uma melhor revisão do português. Mas nada disto estraga a leitura. Todavia, se é um leitor de língua inglesa, talvez seja melhor deitar mão do original inglês."
Desidério Murcho (escritor e crítico literário), in Crítica, http://criticanarede.com/livros.html
* Livro recomendado pelo PNL.
Para saber mais e consultar outros exemplos e referências a livros e escritoresÍPSILON, separata do Jornal PÙBLICO, dedicada à cultura, neste caso à crítica de livros
Jornal de Letras - sobre Livros e escritores
Revista Ler - Os 50 escritores mais influentes do século XX
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