Que boa ideia vir para o Espanhol! Tudo ali lhe agradava – o aparador envernizado, o
espelho com o caixilho resguardado por uma gaza cor-de-rosa, e o retrato de Prim, num
cavalo empinado, agitando um estandarte. E foi quase com orgulho que, depois do café,
acendeu o seu charuto e se foi encostar à varanda: a tarde limpara, as ruas secavam sob o
norte frio; uma carruagem que passou, com dois criados de casacos brancos, fê-lo pensar que talvez fosse Ela, a sua desconhecida do vestido de xadrez: quando se agachou para espreitar, entreviu um homem gordo de lunetas! Mas todos os seus desejos de amores, de luxo, de celebridade, tinham-se posto a chalrar como pássaros acordados. Examinava avidamente as toilettes dos homens; achou adoráveis duas senhoras que atravessavam a calçada, com os vestidos apanhados, mostrando as saias brancas que lhes batiam o tornozelo. Nunca imaginara Lisboa tão vasta, tão aparatosa, e parecia-lhe que as ideias deviam ter decerto a amplidão das ruas, e os sentimentos a elegância dos vestuários.
A rapariga de robe de chambre escarlate veio então debruçar-se à varanda próxima: erguia o rosto, olhava o céu e o tempo. Artur achou-a deliciosa, com o seu pescoço muito branco, as formas copiosas, toda roliça e cálida.
– Quem é esta senhora? – perguntou ele para dentro ao criado que levantava a mesa,
cantarolando.
O moço chegou-se, espreitou:
– É a Mercedes. – E fitando as botas de Artur com um bamboleamento triste de cabeça
esguedelhada, repetiu ainda: – Estão na última. Já usted vê!…
Artur encolheu os ombros, furioso. De resto, observando os homens na rua, já pensara que o seu fato de Oliveira era maltalhado e provinciano: por isso só saiu à noite, depois de aceso o gás.
Com que deleite pisou enfim as lajes ainda húmidas dos passeios, respirou a friagem de
inverno, o ar de Lisboa, que, depois do pesadume das ruazitas de Oliveira, lhe parecia ter a
vitalidade oxigenada onde se dilatam as faculdades! Embasbacava para as vitrinas alumiadas das lojas; estacava, pasmando para os rostinhos pálidos das mulheres que passavam; voltava‑se com admiração para seguir as carruagens de criados perfilados; e da claridade do gás, da vastidão das ruas, da multidão sussurrante, vinha-lhe como que uma sensação de atividades espalhadas, de paixões, de grandezas vagas que o perturbava: era como se a atmosfera estivesse saturada das emanações de uma vida rica, sábia, idealizadora e ardente! Mas sentia-se acanhado: apesar de lhe apetecer prodigiosamente uma gravata azul que viu num mostrador, não ousou entrar na loja; o trotar das parelhas entontecia-o; o andar desenvolto dos homens, falando alto, dava-lhe um medo pueril de agressões; tinha vergonha do seu velho paletó, mais curto que as abas da sobrecasaca que trazia; sentiu-se mesmo agradecido a um sujeito que lhe pediu lume, cortesmente, como se recebesse dele um ato de benevolência. O homem, depois de acender o charuto, disse para outro que esperava, assobiando:
– Para o Martinho, hem!?
E Artur foi-os seguindo timidamente, ansioso por ver o Martinho! Pareceu-lhe esplêndido, com a acumulação dos chapéus altos entre os espelhos dourados, sob uma névoa de fumo de tabaco, no bruaá contínuo das conversas. Não se atreveu a entrar. À porta um grupo palrava, e Artur contemplava-o de longe, com devoção, pensando que deviam ser poetas e estadistas…
Subiu-lhe então de repente ao cérebro um vapor excitante de emanações intelectuais:
teve pressa de entrar naquela existência – relacionar-se, regalar-se das discussões sobre
Arte e Ideal, «ser também de Lisboa!»
espelho com o caixilho resguardado por uma gaza cor-de-rosa, e o retrato de Prim, num
cavalo empinado, agitando um estandarte. E foi quase com orgulho que, depois do café,
acendeu o seu charuto e se foi encostar à varanda: a tarde limpara, as ruas secavam sob o
norte frio; uma carruagem que passou, com dois criados de casacos brancos, fê-lo pensar que talvez fosse Ela, a sua desconhecida do vestido de xadrez: quando se agachou para espreitar, entreviu um homem gordo de lunetas! Mas todos os seus desejos de amores, de luxo, de celebridade, tinham-se posto a chalrar como pássaros acordados. Examinava avidamente as toilettes dos homens; achou adoráveis duas senhoras que atravessavam a calçada, com os vestidos apanhados, mostrando as saias brancas que lhes batiam o tornozelo. Nunca imaginara Lisboa tão vasta, tão aparatosa, e parecia-lhe que as ideias deviam ter decerto a amplidão das ruas, e os sentimentos a elegância dos vestuários.
A rapariga de robe de chambre escarlate veio então debruçar-se à varanda próxima: erguia o rosto, olhava o céu e o tempo. Artur achou-a deliciosa, com o seu pescoço muito branco, as formas copiosas, toda roliça e cálida.
– Quem é esta senhora? – perguntou ele para dentro ao criado que levantava a mesa,
cantarolando.
O moço chegou-se, espreitou:
– É a Mercedes. – E fitando as botas de Artur com um bamboleamento triste de cabeça
esguedelhada, repetiu ainda: – Estão na última. Já usted vê!…
Artur encolheu os ombros, furioso. De resto, observando os homens na rua, já pensara que o seu fato de Oliveira era maltalhado e provinciano: por isso só saiu à noite, depois de aceso o gás.
Com que deleite pisou enfim as lajes ainda húmidas dos passeios, respirou a friagem de
inverno, o ar de Lisboa, que, depois do pesadume das ruazitas de Oliveira, lhe parecia ter a
vitalidade oxigenada onde se dilatam as faculdades! Embasbacava para as vitrinas alumiadas das lojas; estacava, pasmando para os rostinhos pálidos das mulheres que passavam; voltava‑se com admiração para seguir as carruagens de criados perfilados; e da claridade do gás, da vastidão das ruas, da multidão sussurrante, vinha-lhe como que uma sensação de atividades espalhadas, de paixões, de grandezas vagas que o perturbava: era como se a atmosfera estivesse saturada das emanações de uma vida rica, sábia, idealizadora e ardente! Mas sentia-se acanhado: apesar de lhe apetecer prodigiosamente uma gravata azul que viu num mostrador, não ousou entrar na loja; o trotar das parelhas entontecia-o; o andar desenvolto dos homens, falando alto, dava-lhe um medo pueril de agressões; tinha vergonha do seu velho paletó, mais curto que as abas da sobrecasaca que trazia; sentiu-se mesmo agradecido a um sujeito que lhe pediu lume, cortesmente, como se recebesse dele um ato de benevolência. O homem, depois de acender o charuto, disse para outro que esperava, assobiando:
– Para o Martinho, hem!?
E Artur foi-os seguindo timidamente, ansioso por ver o Martinho! Pareceu-lhe esplêndido, com a acumulação dos chapéus altos entre os espelhos dourados, sob uma névoa de fumo de tabaco, no bruaá contínuo das conversas. Não se atreveu a entrar. À porta um grupo palrava, e Artur contemplava-o de longe, com devoção, pensando que deviam ser poetas e estadistas…
Subiu-lhe então de repente ao cérebro um vapor excitante de emanações intelectuais:
teve pressa de entrar naquela existência – relacionar-se, regalar-se das discussões sobre
Arte e Ideal, «ser também de Lisboa!»
Eça de Queirós, A Capital, Porto, Lello & Irmão, 1979
Ver a prova, os critérios e a correção completa em:
http://www.gave.min-edu.pt/np3/430.html
Ainda assim:
Grupo I
1. Características do espaço que deslumbram Artur:
- o mobiliário bem cuidado e luxuoso («o aparador envernizado, o espelho com o caixilho resguardado por uma gaza cor-de-rosa»);
- a pintura («e o retrato de Prim...»);
- a vista proporcionada da cidade («as ruas secavam sob o norte frio...», «uma carruagem que passou, com dois criados de casacos brancos...»);
- a elegância dos transeuntes («Examinava avidamente as toilettes dos homens; achou adoráveis duas senhoras que atravessavam a calçada, com os vestidos apanhados, mostrando as saias brancas...»);
- os veículos em circulação («uma carruagem que passou, com dois criados de casacos brancos...»);
- a vastidão e o aparato de Lisboa («Nunca imaginara Lisboa tão vasta, tão aparatosa...»).
2. O diálogo entre o criado e Artur, nomeadamente uma fala do primeiro referindo-se às botas do segundo («- Estão na última. Já usted vê!...») , revela o provincianismo e a pobreza do seu vestuário / calçado, que está gasto de tanto uso e fora de moda.
Ao constatar o facto, Artur decide só sair «à noite» porque, desse modo, ficaria menos exposto / visível o seu aspeto pobre e provinciano, isto é, passaria despercebido a coberto da escuridão noturna e pela iluminação a gás.
3. Contraste entre as diferentes emoções sentidas por Artur:
- o fascínio, deslumbramento, espanto e admiração:
- o deleite inicial ao passear por Lisboa, motivado pela novidade do que vê e pela modernidade da cidade;
- o fascínio ao contemplar as vitrinas iluminadas das lojas;
- o espanto e a admiração ao observar as mulheres com que se cruza, pelas carruagens, pela vastidão das ruas, pelo movimento e pela multidão;
- a perturbação motivada pela atmosfera «saturada das emanações de uma vida rica, sábia, idealizadora e ardente!»;
- a vergonha e o sentimento de inferioridade:
- o acanhamento e o sentimento de inferioridade («Mas sentia-se acanhado...»);
- o entontecimento motivado pelo ambiente citadino («o trotar das parelhas entontecia-o»);;
- o medo infantil de agressões («o andar desenvolto dos homens, falando alto, dava-lhe um medo pueril de agressões»);
- a vergonha do seu vestuário, velho, gasto, fora de moda («tinha vergonha do seu velho paletó, mais curto que as abas da sobrecasaca que trazia...»);
- a sensação de alívio, motivada pelo pedido de lume.
4. A expressão traduz o desejo de integração sentido pela personagem, de fazer parte daquela, regalar-se das discussões sobre Arte e Ideal»), de frequentar os mesmos espaços.
Grupo II
Versão 1 Versão 2
1.1. C A
1.2. A D
1.3. B C
2.1. A oração subordinada adjetiva relativa é a seguinte: «que por lá põem os pés».
2.2. A expressão «o viajante» desempenha a função sintática de sujeito.
2.2. A expressão «o viajante» desempenha a função sintática de sujeito.
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